segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Esta história é quase nada

Devo acrescentar um algo que importa muito para a apreensão da narrativa: é que esta é acompanhada do princípio ao fim por uma levíssima e constante dor de dentes, coisa de dentina exposta. Afianço também que a história será igualmente acompanhada pelo violino plangente tocado por um homem magro bem na esquina. A sua cara é estreita e amarela como se ela já tivesse morrido. E talvez tenha. Tudo isso eu disse tão longamente por medo de ter prometido demais e dar apenas o simples e o pouco. Pois esta história é quase nada. O jeito é começar de repente assim como eu me lanço de repente na água gélida do mar, modo de enfrentar com uma coragem suicida o intenso frio. Vou agora começar pelo meio dizendo que – que ela era incompetente. Incompetente para a vida.
Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. Só vagamente tomava conhecimento da espécie que tinha de si em si mesma. Se fosse criatura que se exprimisse diria: o mundo é fora de mim, eu sou fora de mim. (Vai ser difícil escrever esta história. Apesar de eu não ter nada a ver com a moça, terei que me escrever todo através dela por entre espantos meus. Os fatos são sonoros mas entre os fatos há um sussurro. É o sussurro que me impressiona). Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. Tanto que (explosão) nada argumentou em seu próprio favor quando o chefe da firma de representante de roldanas avisou-lhe com brutalidade (brutalidade essa que ela parecia provocar com sua cara de tola, rosto que pedia tapa), com brutalidade que só ia manter no emprego Glória, sua colega, porque quanto a ela, errava demais na datilografia, além de sujar invariavelmente o papel. Isso disse ele. Quanto à moça, achou que se deve por respeito responder alguma coisa e falou cerimoniosamente a seu escondidamente amado chefe:
Me desculpe o aborrecimento.
O senhor Raimundo Silveira – que a essa altura já lhe havia virado as costas – voltou-se um pouco surpreendido com a inesperada delicadeza e alguma coisa na cara quase sorridente da datilógrafa o fez dizer com menos grosseria na voz, embora a contragosto:
Bem, a despedida pode não ser para já, é capaz até de demorar um pouco.
Depois de receber o aviso foi ao banheiro para ficar sozinha porque estava toda atordoada. Olhou-se maquinalmente ao espelho que encimava a pia imunda e rachada, cheia de cabelos, o que tanto combinava com sua vida. Pareceu-lhe que o espelho baço e escurecido não refletia imagem algum. Sumira por acaso a sua existência física? Logo depois passou a ilusão e enxergou a cara todo deformada pelo espelho ordinário, o nariz tornado enorme como o de um palhaço de nariz de papelão. Olhou-se e levemente pensou: tão jovem e já com ferrugem.
(Há os que têm. E há os que não têm. É muito simples: a moça não tinha. Não tinha o quê? É apenas isso mesmo: não tinha. Se der para me entenderem, está bem. Se não, também está bem. Mas por que trato dessa moça quando o que mais desejo é trigo puramente maduro e ouro no estio?)
Quando era pequena sua tia para castigá-la com medo dissera-lhe que homem-vampiro – aquele que chupa sangue da pessoa mordendo-lhe o tenro da garganta – não tinha reflexo no espelho. Até que não seria de todo ruim ser vampiro pois bem lhe iria algum rosado de sangue no amarelado do rosto, ela que não parecia ter sangue a menos que viesse um dia a derramá-lo.
A moça tinha ombros curvos como os de uma cerzideira. Aprendera em pequena a cerzir. Ela se realizaria muito mais se se desse ao delicado labor de restaurar fios, quem sabe se de seda. Ou de luxo: cetim bem brilhoso, um beijo de almas. Cerzideirinha mosquito. Carregar em costas de formiga um grão de açúcar. Ela era de leve como uma idiota, só que não o era. Não sabia que era infeliz. É porque ela acredita. Em quê? Em vós, mas não é preciso acreditar em alguém ou em alguma coisa – basta acreditar. Isso lhe dava às vezes estado de graça. Nunca perdera a fé.
(Ela me incomoda tanto que fiquei oco. Estou oco desta moça. E ela tanto mais me incomoda quanto menos reclama. Estou com raiva. Uma cólera de derrubar copos e pratos e quebrar vidraças. Como me vingar? Ou melhor, como me compensar? Já sei: amando meu cão que tem mais comida do que a moça. Por que ela não reage? Cadê um pouco de fibra? Não, ela é doce obediente.)
Viu ainda dois olhos enormes, redondos, saltados e interrogativos – tinha olhar de quem tem uma asa ferida – distúrbio talvez de tiroide, olhos que perguntavam. A quem interrogava ela? A Deus? Ela não pensava em Deus, Deus não pensava nela. Deus é de quem conseguir pegá-lo. Na distração aparece Deus. Não fazia perguntas. Adivinhava que não há respostas. Era lá tola de perguntar? E de receber um “não” na cara? Talvez a pergunta vazia fosse apenas para que um dia alguém não viesse a dizer que ela nem ao menos havia perguntado. Por falta de que lhe respondesse ela mesma parecia se ter respondido: é assim porque é assim. Existe no mundo outra resposta? Se alguém sabe de uma melhor, que se apresente e a diga, estou há anos esperando.
Clarice Lispector, in A hora da estrela

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