sexta-feira, 30 de março de 2018

Quando nos conhecemos, ele não vivia assim

Agora dizem que ele comprou um apartamento em Miami e viaja para lá três vezes por ano; mas quando nos conhecemos, ele não vivia assim. Aos domingos passeávamos no Jardim da Luz, eu ficava lendo e ele gostava de ver os passarinhos empoeirados, imitava os pássaros que nem uma criança, ele queria voar mais alto que as aves, mas ainda não tinha asas. Ele ainda me chamava de Linda, eu oferecia a ele uma esfirra, um pastel de carne, meu ex-namorado não tinha onde cair morto. Um biscateiro bonito, isso ele era. Aí fez um teste para ator de TV e se saiu bem. Bem? Ele se saiu maravilhosamente bem. Ele e uma amiga, que agora é atriz, ou se diz atriz. Hoje, os dois atores ganham uma fortuna enquanto eu continuo em sala de aula, lecionando matemática a jovens que não sabem calcular a raiz quadrada de dezesseis, não sabem sequer somar a idade dos pais. Muitos não têm pai nem mãe, ou nem conheceram os pais. Ninguém sabe matemática, mas todos querem ganhar dinheiro. E o que faz a fama? O que faz o dinheiro às pencas? Meu ex-namorado trocou nosso amor pela televisão e por essas viagens, e ele, que nunca foi de dar risada, agora ri por qualquer coisa, qualquer besteira, nas fotos em que aparece ele está sempre rindo, como se o mundo fosse uma gargalhada sem fim. Ele não me chama mais de Linda, e sim de Lindalvina, meu nome. Você precisa ver o apartamento que ele comprou na Casa Verde. Todo atapetado, a sala entupida de móveis laqueados, com figuras de elefantes e macacos, horríveis pro meu gosto. Cada foto do galã deve valer uma fortuna, nem assim ele me ajuda, porque agora vive em outro mundo e eu sou apenas uma lembrança distante. Ou não sou mais nada e só tenho notícias dele quando encontro amigos que me dizem: “Ele está em Palm Beach”. Ou: “Ele apareceu em tal revista, vai fazer o papel de bandido ou de garanhão em tal novela ou seriado”. Mas esse ator, o bandido ou garanhão que brilha na tela, morou comigo nos fundos de uma casa em Diadema, onde as baratas nos visitavam e eu, não ele, as matava. Você deve pensar que tudo isso é ressentimento de mulher abandonada. Pode ser. Mas só assim consigo recordar essa história, porque nem todas as lembranças são boas. Se ele ler sua crônica, vai se reconhecer. Não é preciso citar o nome dele. O meu nome, sim. Para que ele saiba que o galã de hoje foi um vendedor de sonhos na praça da República e na Sé, onde ele distribuía um panfleto horroroso sobre o futuro de cada pessoa que enganava: O teu destino é cheio de alegrias admiráveis, mas nem tudo que reluz é ouro … Para que ele saiba que no nosso quarto ele pendurava a foto da mãe dele quando fazíamos amor e que ele se julgava um artista de cinema antes de ser o péssimo ator de dramalhões vulgares. Quando eu o conheci, ele mal sabia escrever, o que não é demérito no nosso pobre país, mas eu o estimulei e ensinei a ler bons livros, porque ele só lia livros roubados que falavam de sonhos grandiosos, receitas para se dar bem, conselhos para se tornar um líder; lia também biografias de cães e gatos famosos. Eu lhe dei um livro de crônicas de Rubem Braga e ele ficou deslumbrado; depois lhe dei uma novela de Tolstói e uma antologia de contos de Machado, que ele adorou. E por um momento pensei que ele ia se salvar da banalidade deste mundo em que vivemos, mas foi engolido ou seduzido pela fama e ambição. Ele deve se lembrar de tudo isso. Por via das dúvidas, escreva na sua crônica que ele foi um péssimo amante nas nossas primeiras noites, e que eu lhe ensinei a amar. Ele nunca vai se esquecer disso, porque era o que mais o atormentava.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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