sexta-feira, 30 de março de 2018

Correr com a sela

Para o poltrão, fugindo às obrigações, evadindo-se do cumprimento do dever moral, desertando das responsabilidades, desaparecendo no momento da angustiosa necessidade, dizemos que correu com a sela.
Originar-se-ia, provavelmente, do ciclo da pastorícia, do costume de andar a cavalo, daquele tempo em que os homens eram homens e viajavam a cavalo: “when men were men and rode on horses”, na frase de Harold Preece.
O cavalo, animal nobre, é credor de toda confiança. Quem o monta é o cavaleiro e do seu uso, nas batalhas, provém a cavalaria, fundamento aristocrático. O cavaleiro; apeando-se para qualquer necessidade natural, vendo sua montada fugir, desertando do serviço, correndo com a sela, deixando o senhor a pé, sem meios de condução no meio da estrada, só poderia considerar o ato como prova da mais baixa vilania e da mais cruel traição. Aplicaria a imagem ao homem desidioso, destituído de vergonha, indigno do convívio com decência e lealdade. Há, porém, outra explicação, histórica, comprovada e real.
Quando um fidalgo, desde o tempo das Cruzadas (séculos XI-XIII), portava-se indecorosamente nas campanhas militares, com notória pusilanimidade, tornando-se indesejável na classe nobre, era julgado pelos seus pares e condenado à expulsão ignominiosa. Raspavam-lhe a cabeça (descalvação), e daí a frase ainda corrente: ficou com a calva à mostra; quebravam-lhe as esporas, les éperons brisés, originando outra frase depreciativa: é um espora quebrada, desbriado, traiçoeiro, sem pundonor, e ao fim obrigavam-no a sair da assembleia carregando uma sela nos ombros. Saía, fugia, corria com a sela. Estava, para sempre, desmoralizado.
Collin de Plancy (Dictionnaire féodal I, Paris, 1819) informa que durante a primeira dinastia dos Reis da França (IV ao VIII séculos) havia um castigo idêntico, bem anterior. O francês culpado de algum crime de vulto era condenado a percorrer determinada distância, nu en chemise, levando um cão ou uma sela sur ses épaules.
Collin de Plancy não estabelece distinção entre nobre e plebeu. Creio que a punição reservar-se-ia preferencialmente para os fidalgos. Transportar uma sela seria a redução simbólica do cavaleiro à condição de animal de montada. Não era possível degradação mais aviltante e anulação mais dolorosa de todos os direitos senhoriais. Para um vilão, que não pertencesse à Cavalaria Viloa, a pena teria significação menos humilhante e cruel. Tanto faria carregar uma sela como a um cão.
Há outras acepções de carregar a sela, estudadas no Anubis e outros ensaios (245-250, ed. Cruzeiro, Rio de Janeiro, 1951) e no Superstições e costumes (235-239, ed. Antunes, Rio de Janeiro, 1958), sem que tenham relação mais expressiva com o nosso motivo presente.
Dizemos correr com a sela invariavelmente dirigido a uma criatura humana, faltosa e cobarde.
A origem virá da penalidade medieval ou do simples ato de o cavalo abandonar o cavaleiro, fugindo com todos os arreios?
Resta-nos o direito da escolha.
Luís da Câmara Cascudo, in Coisas que o povo diz

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