quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Evangelho de Judas

Chegou-me a última edição da revista Geographic Magazine, toda ela dedicada ao Evangelho de Judas, que está produzindo uma grande confusão nos círculos religiosos. E isso porque esses manuscritos trazem uma versão diferente do que aconteceu: Judas não foi traidor. Não entendo essa confusão, porque qualquer pessoa minimamente informada em teologia sabe que Judas não foi um traidor. Trair é romper um pacto. Mas Judas não rompeu pacto algum. Pelo contrário: fez cumprir o pacto que lhe havia sido destinado por Deus Pai desde toda eternidade. Porque Deus, na sua onisciência, estabeleceu um plano de salvação para os homens que, de outra forma, iriam para o Inferno. Deus poderia perdoar os seus pecados. Mas Deus não perdoa. Aquilo a que se dá o nome de perdão é, na realidade, o pagamento de uma dívida pendente. Deus não perdoa dívidas. As dívidas têm de ser quitadas. Quitadas com quê? Dizem as Escrituras que sem sangue não há remissão de pecados. Deus só aceita pagamento em sangue. Que sangue seria suficiente para pagar os pecados do mundo? Somente um sangue de valor infinito. Mas, sangue de valor infinito, só o sangue divino. Para isso veio Jesus – segundo a teologia –, para derramar o seu sangue de valor infinito que Deus aceitaria como pagamento. Deus planeja a morte do seu próprio filho para nos salvar do Inferno. Por que Deus criou o Inferno, isso eu não sei. Sei que não foi o Diabo, porque Deus, sendo onipotente, não permitiria que o Diabo tivesse tais poderes. Então, todo o plano elaborado por Deus Pai desde toda a eternidade dependia de que Jesus fosse crucificado. Imaginem que ele não fosse crucificado. Que ele se mudasse para a Grécia e terminasse os seus dias com 88 anos de idade, como professor de filosofia. A filosofia ganharia, mas a humanidade iria para o Inferno. Foi assim que Deus, desde toda eternidade, determinou que um homem chamado Judas entregasse Jesus para o sacrifício. Judas não tinha alternativa. Ele tinha de ser fiel àquilo que Deus determinara. Então não foi Judas que entregou Jesus. Parece assim, vendo-se do lado do tempo. Mas, vendo-se sub specie aeternitatis , é Deus que está fazendo tudo. Judas foi um fiel instrumento de Deus para que a salvação se realizasse. Assim, nenhum outro apóstolo contribuiu tanto para a salvação da humanidade quanto Judas. Isso já era do conhecimento da Igreja, desde sempre. Não entendo, portanto, o rebuliço. Proponho a canonização de Judas.
Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola

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