sexta-feira, 14 de março de 2025

Esperança de ter dito alguma coisa

Nos Poemas Possíveis, que foi publicado em 1966, aparecem uns versos — “Poema a boca fechada” — escritos ainda nos anos 40 e conservados até àquela altura por uma espécie de superstição que me impediu de lhes dar o destino sofrido por tantos outros: não o cesto dos papéis, pois a tanto não chegavam os meus luxos domésticos, mas, simplesmente, o caixote do lixo. Desse poema, as únicas palavras aproveitáveis, ou, para dizê-lo doutro modo, aquelas que o puseram a salvo da tentação destruidora, são as seguintes: “Que quem se cala quanto me calei / não poderá morrer sem dizer tudo.” Sobre o dia em que elas foram escritas passaram quase cinquenta anos, e se é certo lembrar-me ainda de como era o meu silêncio de então, já não sou capaz de recordar (se o sabia) que tudo era aquele que me iria impedir de morrer enquanto o não dissesse. Hoje já sei que tenho de contentar-me com a esperança de ter dito alguma coisa.

José Saramago, em Cadernos de Lanzarote

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