A
menina chora enquanto eu aperto o isqueiro com as duas mãos.
Abro
e fecho a chapa metálica: uma pequena chama surge e desaparece,
surge e desaparece. Quando a atravesso com os dedos, uma mornidão
agradável se espalha pela minha palma e consigo ouvir o chamado do
fogo, uma canção pesada, decadente. Eu tento resistir, recordar os
passos que me levavam para longe, para um tempo calmo e seguro, e as
palavras quase se formam na minha cabeça, mas logo as perco por trás
do choro de minha filha — o choro de um filho é feito para ser
insuportável para a mãe, isso eu tinha lido em alguma revista para
grávidas, antes de tudo.
Se
mantenho a palma imóvel sobre a chama, rapidamente a dor acorda os
meus nervos e me concentra no momento presente, um corpo sobre o
sofá, um corpo que necessita, enquanto, ao mesmo tempo, os
gritos da menina me transportam para outras dores: para o quarto de
hospital onde ela me torceu as entranhas por dezoito horas. Dezoito
horas em que martelou com seus pezinhos os ossos das minhas costelas,
em que me rasgou o ventre pouco a pouco, explodindo as veias da
placenta como se tivesse pressa. Dezoito horas para finalmente deixar
seu crânio mole escoar pelas minhas pernas, uma última torção de
seus calcanhares garantindo que me fossem necessários sete pontos
cirúrgicos para estancar o sangramento.
A
ardência da queimadura que forma um ponto vermelho abaixo da linha
da vida me faz puxar a mão. Fecho o isqueiro, percorrendo os rebites
com as unhas, tentando me decidir a guardá-lo, a escondê-lo debaixo
da roupa de cama, depois me repreendendo, preciso de um lugar melhor
do que aqueles armários, preciso encontrar um canto seguro, tento
pensar, mas é impossível, impossível pensar quando a menina chora.
Fecho os olhos e o barulho se torna ainda pior, por isso volto a
acender o isqueiro, o fogo sufocando por um segundo até que eu o
deixe respirar numa combustão controlada, sumindo e reaparecendo
mais grandioso a cada vez que eu o liberto.
O
fogo dominando as pupilas, busco às pressas por novas memórias,
memórias suaves que me embalem para longe do parto e das dores
maiores — recordo então da casa de praia, quando eu e Marcelo nos
isolamos por oito semanas no litoral, numa mansão de filme,
minimalista e branca, emoldurada por cortinas translúcidas que davam
contornos ao vento. Esforço-me para invocar a paz daqueles dias, os
passos melódicos das ondas, mas o choro da menina forma um
crescendo, alça voo pelos corredores até me encontrar, encolhida
sobre o porcelanato deste apartamento de duzentos metros quadrados,
um por andar. Fecho o isqueiro, a menina engasga e por um segundo há
um silêncio milagroso, perfeito; mas ela logo recupera o fôlego e
retoma o pranto avassalador, ainda mais poderoso do que antes.
Estamos
assim há doze dias. Começo a me familiarizar com as regras desta
batalha, com as estratégias da minha adversária de três quilos e
quatrocentos gramas — um pouco abaixo do peso, embora eu
constantemente a alimente, é a única forma de mantê-la calada.
Três quilos e já se mostra mais forte do que eu — quando chora,
todo o seu corpo se tensiona, e a pele se avermelha, sugando o sangue
das artérias. O pescoço se contrai para dentro das clavículas e o
peito se expande, para acomodar os pulmões inchados, vigorosos. É
da minha dor que ela se nutre, a única moeda que aceita pela
indignidade a que a submeti — sim, eu sei por que ela chora. Entre
nós não há segredos. Os pequenos enganos aos quais nos induzimos
foram, todos, rapidamente corrigidos: eu, tendo pensado que à
tragédia do parto se seguiriam os tempos doces da primeira infância,
tive a carne dos seios e dos braços esfolada pelas presas da menina;
ela, se abrigou ilusões quanto à natureza de sua mãe, endireitou
as próprias convicções após a queda.
Fecho
o isqueiro e dessa vez o arremesso no chão — ele desliza sem
esforço pelo porcelanato brilhante, aninhando-se num dos tapetes.
Tenho vontade de me levantar, de pedir ajuda, de fugir para onde não
houvesse isqueiros, para longe do fogo, para perto do mar. Como se me
escutasse, a menina uiva sem interrupções, desde a queda sabíamos
ambas que eu não iria a lugar algum, essa era a sua cartada —
fazer-me refém de seu desamparo, de sua fome pelo meu leite, do nome
que eu lhe emprestei, após herdá-lo de meus avós. Meu cérebro
parece ter encolhido, a enxaqueca que se sedimentava desde a
madrugada emerge de súbito, a menina é o competente maestro desta
cefaleia, as correntes de náusea que me assolam seguem o ritmo de
seus dedinhos, dançando no ar enquanto me aniquilam.
É
impossível, coloco as almofadas sobre o rosto, mas, sem o silêncio,
a escuridão apenas me enclausura, tapa o meu nariz e me sufoca, é
exatamente o que deseja a menina, ver-me afogada em saliva como ela
mesma, tremendo e babando pelos cantos da boca. Desde a queda, ela me
odeia, vem me punindo todos os dias, usando a única arma que tem,
sempre nesta mesma luta — ela me atacando na máxima força de seus
pulmões e eu resistindo, exilada no extremo do apartamento, o mais
longe possível do quartinho cor-de-rosa onde ela se entrincheira.
Ela conhece as minhas fraquezas, ataca certeira e impiedosa, sabe do
segredo sob a roupa de cama e tenta me empurrar de volta ao isqueiro,
para dentro da lama, de onde saí uma vez quase louca, quase morta.
Estou acordada há praticamente doze dias, posso ouvi-la mesmo com
todas as portas fechadas, às vezes eu a ouço até durante o sono,
nas poucas horas em que ela enfim cede ao cansaço e dorme, num breve
cessar-fogo que me enche de pesadelos.
Embrenho-me
no sofá em busca de algum alívio, mas não há jeito, os sons
reverberam ainda mais pelos sólidos, e à tarde é sempre pior — a
menina chega ao ápice de seu concerto quando Marcelo não está,
para reduzir-se a um gemido constante e lacrimoso que se estende pela
noite, o suficiente para que ele me considere inapta, mas não
inteiramente incapaz, a ponto de exigir uma intervenção. Ela não
quer que eu me liberte, ainda não paguei o suficiente pelo que a fiz
passar quando a derrubei; quando chora, ela está deixando claro que
não esqueceu.
Finalmente
me levanto, sinto que a dor irá me consumir se não me mover,
desintegrando-me de dentro para fora. A menina chora, ao redor tudo
parece oscilar por um instante, acho que vou vomitar, o choro cresce
por trás dos meus ossos, pressiona meus nervos contra a pele, nesses
doze dias tentei de tudo para fazê-la parar, para conseguir o seu
perdão, e nada ajudou — nem embalá-la, nem virá-la de lado para
arrotar, nem trocar-lhe as fraldas; mesmo alimentá-la só funcionava
pelos minutos que ela levava para me arrancar o bico do peito,
recomeçando a gritar tão logo estivesse satisfeita. Decidi então
ignorá-la e ver se isso surtia algum efeito — mas o choro parece
ter se tornado ainda mais violento, ela se esgoela com uma força
inadmissível, dantesca. Penso que talvez não quisesse nascer, que
desejasse permanecer dentro de mim para sempre, aninhada entre as
minhas costelas, que o parto lhe parecera uma espécie de rejeição
fundamental — a minha falência enquanto mãe, da qual, desde
então, ela se vingava.
Pego
o isqueiro de volta e vou ao banheiro, mal me debruço sobre a pia
quando a bile me invade a garganta, pingando morna pela cuba. As
luzes me assaltam os olhos, a dor é excruciante, envelopada pelos
uivos insistentes da menina; ao menos estou sozinha e não preciso me
preocupar com o que os outros diriam, a maior vantagem deste
apartamento é não ter vizinhos e, após a queda, eu dispensei os
serviços de Louise. Isso também foi mais uma vitória da menina —
meu tempo está agora inteiramente à sua mercê; eu dependo de sua
boa vontade para me sentar e ter uma refeição, tomar um banho ou
dormir, graças que ela concede apenas muito esparsamente. O que
diria Louise se nos visse neste momento, eu me desfazendo sobre a
cuba, a menina soluçando no quarto, coberta de ranho?
Abro
o armário e afasto as caixas até ver, no fundo, o frasco de
shampoo. Sinto vontade de chorar, de dançar, enquanto desenrosco a
tampa e puxo de dentro do líquido viscoso o saquinho lacrado, ainda
amarrado à colher. O fogão de indução, nas gavetas da cozinha
jamais entrou uma única caixa de fósforos — Marcelo sempre
atento, tentando me salvar do fogo, vistoriando os lugares errados.
Em meio às buchas coloridas, bem afundada na espuma, a seringa. Meus
olhos ardem, não tinha certeza até aquele momento de que ainda
estavam ali — desde que pari, os dias transcorriam líquidos pelos
dedos, pouco notava da luz e da sombra, sempre imersa na tempestade
que vinha da boca da menina, os pensamentos ralos fugindo pelos
caminhos de minhas sinapses sem fazer qualquer sentido. Governava-me
por instintos, tentando nos manter vivas, eu e a menina,
engalfinhadas em nossa guerra fria particular.
Não
irei usá-los. Mesmo assim, apanho o saquinho, a colher e a seringa,
minha santíssima trindade. Tê-los nas mãos é um socorro, não
irei usar nada daquilo, quero apenas segurá-los, tê-los entre os
dedos por um instante. Sim. Escorrego pelos ladrilhos e apoio a testa
nos joelhos, o isqueiro compondo o quarteto como numa obra magistral
e fantasmagórica. A menina continua chorando, meu Deus, é um
barulho que nunca termina. Ela estava chorando assim no dia em que a
deixei cair, dentro da minha cabeça explodem alfinetes em todas as
direções, a menina chora, chora, chora, leva-me de volta ao quarto
de bebê naquela tarde, eu a segurando e tentando fazê-la aceitar o
peito, ela se debatendo com tamanha energia que me escorregou pelas
mãos, eu não dormia direito desde o parto, os móveis cor-de-rosa
saltavam ao redor, ela chorando, agitando as perninhas vermelhas,
talvez eu tenha afrouxado o abraço no qual a tinha envolvido, ela
gritava e se empurrava para longe, tudo girando, o que foi que eu
fiz, ela caída por cima do tapete, chorando ainda mais forte, tinha
escorregado, foi um acidente, eu não queria tê-la derrubado, ela
chorando e me olhando rancorosamente do chão, meu Deus, eu mirava os
meus braços vazios enquanto ela gritava, mal percebi quando Louise
chegou e a recolheu. Tinha sido um acidente, achei que fosse
desmaiar, tudo saía de foco, há quantos dias a senhora não dorme,
olhei para Louise e a vi envolta do choro esplêndido da menina, do
choro triunfal, a minha filha sabia ali que tinha vencido.
Pisco,
o banheiro aflora ao redor, séptico e gelado. O rosto de Louise
ainda circunda minha visão periférica, o choque em suas bochechas
enquanto ela balbuciava delicadezas para acalmar a menina, o
apartamento tem duzentos metros quadrados, Louise não pode ter
demorado muito para chegar e nos socorrer. Tento lembrar exatamente
quanto tempo deixei a menina no chão, chorando esse mesmo choro que
há doze dias ela vem chorando, mas não consigo ter certeza, a
lembrança se liquefaz sempre que tento encará-la de frente, fugindo
para a neblina por trás dos meus olhos. A lógica que me resta
insiste que Louise chegou em segundos, que levaria apenas um minuto
para atravessar o apartamento, para correr sobre o porcelanato
brilhante em diagonal, mas a menina continua chorando, ela está me
dizendo que é mentira, que eu a abandonei naquele tapete por horas,
por uma eternidade, pela vida inteira.
Uma
onda de prazer gigantesca subitamente me faz relaxar os músculos
contra os azulejos. Eu penso: sim. Penso: graças a Deus. A dor
desaparece, eu havia esquecido como é existir desta maneira: uma
criança levada por balões, carregada por pipas de rabiolas
compridas que desenham sorrisos no ar. Estou de volta ao corpo de
minha mãe, boiando nos fluidos da placenta, inatingível sob camadas
e camadas de tecido celular. Olho para minhas mãos, sorrio, sinto
que posso fazer qualquer coisa, posso hoje mesmo retomar as
esculturas que abandonei pela metade, posso acalmar a menina, não me
levará nem um segundo, posso ligar para Marcelo e dizer que venha
mais cedo, que prepararei o jantar, e será o melhor jantar que
teremos comido na vida, um bom risoto, um vinho português, sim, e a
menina no berço, bela como um anjo…
Levanto
num susto, sem saber quanto tempo havia passado. O sol que entra
forte pelas janelas já não queima as retinas, o corpo leve, gasto
quarenta e três segundos até alcançar o berço dourado. A menina
ainda chora, os lábios repuxados repletos de cuspe, o rostinho
escarlate e suado. Quase não quero tocá-la, mas a coloco nos
braços, ela me estapeando enquanto escorrego a blusa e o sutiã pelo
ombro direito. Ela me lança a fúria de um último olhar antes de se
atirar à minha carne, sugando com força, muito mais força do que
seria preciso. A menina mama, também ao mamar ela me pune,
exigindo-me por inteiro, ser sua mãe me tirou tudo, aquilo que eu
não quis entregar voluntariamente ela tomou quando a deixei cair e
me colidi com a suspeita impregnada nos gestos de Louise, no silêncio
angustiado de Marcelo, que vasculhou o apartamento de cima a baixo
por dias, sem pensar em tocar nas roupas de cama. O choro da menina é
para me recordar de que somos cúmplices nas deficiências de minha
maternidade, de que minha própria identidade agora lhe pertence —
estamos, ambas, confinadas àquela imagem de mãe e filha, dominante
o suficiente para apagar quaisquer indícios da mulher que fui,
repleta de expectativas que tornam necessário que eu falhe em
particular, longe dos olhares curiosos. Eu e a menina, somente, nos
testemunhamos.
Ela
parece mais calma, agora — sua respiração tornou-se quase serena
e, pela primeira vez em doze dias, ela não protesta quando a apoio
sobre o ombro para fazê-la arrotar. Observo seu rosto, um pouco
confusa, ela não costuma me ceder território algum sem pedir por
outra coisa em troca; mas a menina apenas pestaneja repetidamente, e
então está dormindo, um peso quente e pacífico de filha contra meu
ventre. Eu também estou sonolenta, levo alguns instantes para me
lembrar da seringa, e tenho um estremecimento que por pouco não a
desperta — aquela rendição, pois, não foi intencional, nada mais
é do que a droga passando do meu organismo para o dela por meio do
leite que ainda goteja dos meus mamilos. Recosto-me com ela na
poltrona apertada, cochilo boa parte da tarde, quando acordo a menina
está me encarando, muda e de olhos arregalados. Estende as mãozinhas
para o meu peito meio enfiado no sutiã, eu sei o que ela quer, sei
porque fui por anos escrava daquele isqueiro, porque mesmo agora
sinto um delicioso torpor pelos membros que me enche da vontade de
ser dócil, de acariciar os cabelos da menina, de niná-la como a
minha própria mãe jamais fez comigo. Ante a minha lentidão em
puxá-la contra mim, ela abre a boca e ensaia um lamento, mas agora
sou eu que tenho o comando desse jogo, eu que carrego o trunfo desta
nova proximidade, começo a me levantar e a menina se cala, nós nos
fitamos uma à outra até que ela finalmente sucumbe — o murmurar
das folhagens entra pelas janelas e, dentro do apartamento, esse
silêncio estupendo, ressentido, me diz que eu venci.
Marcelo
chega quase à meia-noite, caminha descalço com receio de nos
acordar, ao passar pelo quarto ele nos vê enroscadas num abraço —
sorrio para ele enquanto a menina sorve meu leite em grandes goladas,
o líquido branco e espesso escorre por seu queixo até empapar a
roupinha, eu a enxugo ternamente e sussurro uma canção.
Bethânia Pires Amaro, em O ninho
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