sábado, 23 de novembro de 2024

Leite de cacto



já está pronta pra casar vou contar até três o que eu acabei de dizer não me faça voltar eu não quero ouvir um pio

A menina chora enquanto eu aperto o isqueiro com as duas mãos.
Abro e fecho a chapa metálica: uma pequena chama surge e desaparece, surge e desaparece. Quando a atravesso com os dedos, uma mornidão agradável se espalha pela minha palma e consigo ouvir o chamado do fogo, uma canção pesada, decadente. Eu tento resistir, recordar os passos que me levavam para longe, para um tempo calmo e seguro, e as palavras quase se formam na minha cabeça, mas logo as perco por trás do choro de minha filha — o choro de um filho é feito para ser insuportável para a mãe, isso eu tinha lido em alguma revista para grávidas, antes de tudo.
Se mantenho a palma imóvel sobre a chama, rapidamente a dor acorda os meus nervos e me concentra no momento presente, um corpo sobre o sofá, um corpo que necessita, enquanto, ao mesmo tempo, os gritos da menina me transportam para outras dores: para o quarto de hospital onde ela me torceu as entranhas por dezoito horas. Dezoito horas em que martelou com seus pezinhos os ossos das minhas costelas, em que me rasgou o ventre pouco a pouco, explodindo as veias da placenta como se tivesse pressa. Dezoito horas para finalmente deixar seu crânio mole escoar pelas minhas pernas, uma última torção de seus calcanhares garantindo que me fossem necessários sete pontos cirúrgicos para estancar o sangramento.
A ardência da queimadura que forma um ponto vermelho abaixo da linha da vida me faz puxar a mão. Fecho o isqueiro, percorrendo os rebites com as unhas, tentando me decidir a guardá-lo, a escondê-lo debaixo da roupa de cama, depois me repreendendo, preciso de um lugar melhor do que aqueles armários, preciso encontrar um canto seguro, tento pensar, mas é impossível, impossível pensar quando a menina chora. Fecho os olhos e o barulho se torna ainda pior, por isso volto a acender o isqueiro, o fogo sufocando por um segundo até que eu o deixe respirar numa combustão controlada, sumindo e reaparecendo mais grandioso a cada vez que eu o liberto.
O fogo dominando as pupilas, busco às pressas por novas memórias, memórias suaves que me embalem para longe do parto e das dores maiores — recordo então da casa de praia, quando eu e Marcelo nos isolamos por oito semanas no litoral, numa mansão de filme, minimalista e branca, emoldurada por cortinas translúcidas que davam contornos ao vento. Esforço-me para invocar a paz daqueles dias, os passos melódicos das ondas, mas o choro da menina forma um crescendo, alça voo pelos corredores até me encontrar, encolhida sobre o porcelanato deste apartamento de duzentos metros quadrados, um por andar. Fecho o isqueiro, a menina engasga e por um segundo há um silêncio milagroso, perfeito; mas ela logo recupera o fôlego e retoma o pranto avassalador, ainda mais poderoso do que antes.
Estamos assim há doze dias. Começo a me familiarizar com as regras desta batalha, com as estratégias da minha adversária de três quilos e quatrocentos gramas — um pouco abaixo do peso, embora eu constantemente a alimente, é a única forma de mantê-la calada. Três quilos e já se mostra mais forte do que eu — quando chora, todo o seu corpo se tensiona, e a pele se avermelha, sugando o sangue das artérias. O pescoço se contrai para dentro das clavículas e o peito se expande, para acomodar os pulmões inchados, vigorosos. É da minha dor que ela se nutre, a única moeda que aceita pela indignidade a que a submeti — sim, eu sei por que ela chora. Entre nós não há segredos. Os pequenos enganos aos quais nos induzimos foram, todos, rapidamente corrigidos: eu, tendo pensado que à tragédia do parto se seguiriam os tempos doces da primeira infância, tive a carne dos seios e dos braços esfolada pelas presas da menina; ela, se abrigou ilusões quanto à natureza de sua mãe, endireitou as próprias convicções após a queda.
Fecho o isqueiro e dessa vez o arremesso no chão — ele desliza sem esforço pelo porcelanato brilhante, aninhando-se num dos tapetes. Tenho vontade de me levantar, de pedir ajuda, de fugir para onde não houvesse isqueiros, para longe do fogo, para perto do mar. Como se me escutasse, a menina uiva sem interrupções, desde a queda sabíamos ambas que eu não iria a lugar algum, essa era a sua cartada — fazer-me refém de seu desamparo, de sua fome pelo meu leite, do nome que eu lhe emprestei, após herdá-lo de meus avós. Meu cérebro parece ter encolhido, a enxaqueca que se sedimentava desde a madrugada emerge de súbito, a menina é o competente maestro desta cefaleia, as correntes de náusea que me assolam seguem o ritmo de seus dedinhos, dançando no ar enquanto me aniquilam.
É impossível, coloco as almofadas sobre o rosto, mas, sem o silêncio, a escuridão apenas me enclausura, tapa o meu nariz e me sufoca, é exatamente o que deseja a menina, ver-me afogada em saliva como ela mesma, tremendo e babando pelos cantos da boca. Desde a queda, ela me odeia, vem me punindo todos os dias, usando a única arma que tem, sempre nesta mesma luta — ela me atacando na máxima força de seus pulmões e eu resistindo, exilada no extremo do apartamento, o mais longe possível do quartinho cor-de-rosa onde ela se entrincheira. Ela conhece as minhas fraquezas, ataca certeira e impiedosa, sabe do segredo sob a roupa de cama e tenta me empurrar de volta ao isqueiro, para dentro da lama, de onde saí uma vez quase louca, quase morta. Estou acordada há praticamente doze dias, posso ouvi-la mesmo com todas as portas fechadas, às vezes eu a ouço até durante o sono, nas poucas horas em que ela enfim cede ao cansaço e dorme, num breve cessar-fogo que me enche de pesadelos.
Embrenho-me no sofá em busca de algum alívio, mas não há jeito, os sons reverberam ainda mais pelos sólidos, e à tarde é sempre pior — a menina chega ao ápice de seu concerto quando Marcelo não está, para reduzir-se a um gemido constante e lacrimoso que se estende pela noite, o suficiente para que ele me considere inapta, mas não inteiramente incapaz, a ponto de exigir uma intervenção. Ela não quer que eu me liberte, ainda não paguei o suficiente pelo que a fiz passar quando a derrubei; quando chora, ela está deixando claro que não esqueceu.
Finalmente me levanto, sinto que a dor irá me consumir se não me mover, desintegrando-me de dentro para fora. A menina chora, ao redor tudo parece oscilar por um instante, acho que vou vomitar, o choro cresce por trás dos meus ossos, pressiona meus nervos contra a pele, nesses doze dias tentei de tudo para fazê-la parar, para conseguir o seu perdão, e nada ajudou — nem embalá-la, nem virá-la de lado para arrotar, nem trocar-lhe as fraldas; mesmo alimentá-la só funcionava pelos minutos que ela levava para me arrancar o bico do peito, recomeçando a gritar tão logo estivesse satisfeita. Decidi então ignorá-la e ver se isso surtia algum efeito — mas o choro parece ter se tornado ainda mais violento, ela se esgoela com uma força inadmissível, dantesca. Penso que talvez não quisesse nascer, que desejasse permanecer dentro de mim para sempre, aninhada entre as minhas costelas, que o parto lhe parecera uma espécie de rejeição fundamental — a minha falência enquanto mãe, da qual, desde então, ela se vingava.
Pego o isqueiro de volta e vou ao banheiro, mal me debruço sobre a pia quando a bile me invade a garganta, pingando morna pela cuba. As luzes me assaltam os olhos, a dor é excruciante, envelopada pelos uivos insistentes da menina; ao menos estou sozinha e não preciso me preocupar com o que os outros diriam, a maior vantagem deste apartamento é não ter vizinhos e, após a queda, eu dispensei os serviços de Louise. Isso também foi mais uma vitória da menina — meu tempo está agora inteiramente à sua mercê; eu dependo de sua boa vontade para me sentar e ter uma refeição, tomar um banho ou dormir, graças que ela concede apenas muito esparsamente. O que diria Louise se nos visse neste momento, eu me desfazendo sobre a cuba, a menina soluçando no quarto, coberta de ranho?
Abro o armário e afasto as caixas até ver, no fundo, o frasco de shampoo. Sinto vontade de chorar, de dançar, enquanto desenrosco a tampa e puxo de dentro do líquido viscoso o saquinho lacrado, ainda amarrado à colher. O fogão de indução, nas gavetas da cozinha jamais entrou uma única caixa de fósforos — Marcelo sempre atento, tentando me salvar do fogo, vistoriando os lugares errados. Em meio às buchas coloridas, bem afundada na espuma, a seringa. Meus olhos ardem, não tinha certeza até aquele momento de que ainda estavam ali — desde que pari, os dias transcorriam líquidos pelos dedos, pouco notava da luz e da sombra, sempre imersa na tempestade que vinha da boca da menina, os pensamentos ralos fugindo pelos caminhos de minhas sinapses sem fazer qualquer sentido. Governava-me por instintos, tentando nos manter vivas, eu e a menina, engalfinhadas em nossa guerra fria particular.
Não irei usá-los. Mesmo assim, apanho o saquinho, a colher e a seringa, minha santíssima trindade. Tê-los nas mãos é um socorro, não irei usar nada daquilo, quero apenas segurá-los, tê-los entre os dedos por um instante. Sim. Escorrego pelos ladrilhos e apoio a testa nos joelhos, o isqueiro compondo o quarteto como numa obra magistral e fantasmagórica. A menina continua chorando, meu Deus, é um barulho que nunca termina. Ela estava chorando assim no dia em que a deixei cair, dentro da minha cabeça explodem alfinetes em todas as direções, a menina chora, chora, chora, leva-me de volta ao quarto de bebê naquela tarde, eu a segurando e tentando fazê-la aceitar o peito, ela se debatendo com tamanha energia que me escorregou pelas mãos, eu não dormia direito desde o parto, os móveis cor-de-rosa saltavam ao redor, ela chorando, agitando as perninhas vermelhas, talvez eu tenha afrouxado o abraço no qual a tinha envolvido, ela gritava e se empurrava para longe, tudo girando, o que foi que eu fiz, ela caída por cima do tapete, chorando ainda mais forte, tinha escorregado, foi um acidente, eu não queria tê-la derrubado, ela chorando e me olhando rancorosamente do chão, meu Deus, eu mirava os meus braços vazios enquanto ela gritava, mal percebi quando Louise chegou e a recolheu. Tinha sido um acidente, achei que fosse desmaiar, tudo saía de foco, há quantos dias a senhora não dorme, olhei para Louise e a vi envolta do choro esplêndido da menina, do choro triunfal, a minha filha sabia ali que tinha vencido.
Pisco, o banheiro aflora ao redor, séptico e gelado. O rosto de Louise ainda circunda minha visão periférica, o choque em suas bochechas enquanto ela balbuciava delicadezas para acalmar a menina, o apartamento tem duzentos metros quadrados, Louise não pode ter demorado muito para chegar e nos socorrer. Tento lembrar exatamente quanto tempo deixei a menina no chão, chorando esse mesmo choro que há doze dias ela vem chorando, mas não consigo ter certeza, a lembrança se liquefaz sempre que tento encará-la de frente, fugindo para a neblina por trás dos meus olhos. A lógica que me resta insiste que Louise chegou em segundos, que levaria apenas um minuto para atravessar o apartamento, para correr sobre o porcelanato brilhante em diagonal, mas a menina continua chorando, ela está me dizendo que é mentira, que eu a abandonei naquele tapete por horas, por uma eternidade, pela vida inteira.
Uma onda de prazer gigantesca subitamente me faz relaxar os músculos contra os azulejos. Eu penso: sim. Penso: graças a Deus. A dor desaparece, eu havia esquecido como é existir desta maneira: uma criança levada por balões, carregada por pipas de rabiolas compridas que desenham sorrisos no ar. Estou de volta ao corpo de minha mãe, boiando nos fluidos da placenta, inatingível sob camadas e camadas de tecido celular. Olho para minhas mãos, sorrio, sinto que posso fazer qualquer coisa, posso hoje mesmo retomar as esculturas que abandonei pela metade, posso acalmar a menina, não me levará nem um segundo, posso ligar para Marcelo e dizer que venha mais cedo, que prepararei o jantar, e será o melhor jantar que teremos comido na vida, um bom risoto, um vinho português, sim, e a menina no berço, bela como um anjo…
Levanto num susto, sem saber quanto tempo havia passado. O sol que entra forte pelas janelas já não queima as retinas, o corpo leve, gasto quarenta e três segundos até alcançar o berço dourado. A menina ainda chora, os lábios repuxados repletos de cuspe, o rostinho escarlate e suado. Quase não quero tocá-la, mas a coloco nos braços, ela me estapeando enquanto escorrego a blusa e o sutiã pelo ombro direito. Ela me lança a fúria de um último olhar antes de se atirar à minha carne, sugando com força, muito mais força do que seria preciso. A menina mama, também ao mamar ela me pune, exigindo-me por inteiro, ser sua mãe me tirou tudo, aquilo que eu não quis entregar voluntariamente ela tomou quando a deixei cair e me colidi com a suspeita impregnada nos gestos de Louise, no silêncio angustiado de Marcelo, que vasculhou o apartamento de cima a baixo por dias, sem pensar em tocar nas roupas de cama. O choro da menina é para me recordar de que somos cúmplices nas deficiências de minha maternidade, de que minha própria identidade agora lhe pertence — estamos, ambas, confinadas àquela imagem de mãe e filha, dominante o suficiente para apagar quaisquer indícios da mulher que fui, repleta de expectativas que tornam necessário que eu falhe em particular, longe dos olhares curiosos. Eu e a menina, somente, nos testemunhamos.
Ela parece mais calma, agora — sua respiração tornou-se quase serena e, pela primeira vez em doze dias, ela não protesta quando a apoio sobre o ombro para fazê-la arrotar. Observo seu rosto, um pouco confusa, ela não costuma me ceder território algum sem pedir por outra coisa em troca; mas a menina apenas pestaneja repetidamente, e então está dormindo, um peso quente e pacífico de filha contra meu ventre. Eu também estou sonolenta, levo alguns instantes para me lembrar da seringa, e tenho um estremecimento que por pouco não a desperta — aquela rendição, pois, não foi intencional, nada mais é do que a droga passando do meu organismo para o dela por meio do leite que ainda goteja dos meus mamilos. Recosto-me com ela na poltrona apertada, cochilo boa parte da tarde, quando acordo a menina está me encarando, muda e de olhos arregalados. Estende as mãozinhas para o meu peito meio enfiado no sutiã, eu sei o que ela quer, sei porque fui por anos escrava daquele isqueiro, porque mesmo agora sinto um delicioso torpor pelos membros que me enche da vontade de ser dócil, de acariciar os cabelos da menina, de niná-la como a minha própria mãe jamais fez comigo. Ante a minha lentidão em puxá-la contra mim, ela abre a boca e ensaia um lamento, mas agora sou eu que tenho o comando desse jogo, eu que carrego o trunfo desta nova proximidade, começo a me levantar e a menina se cala, nós nos fitamos uma à outra até que ela finalmente sucumbe — o murmurar das folhagens entra pelas janelas e, dentro do apartamento, esse silêncio estupendo, ressentido, me diz que eu venci.
Marcelo chega quase à meia-noite, caminha descalço com receio de nos acordar, ao passar pelo quarto ele nos vê enroscadas num abraço — sorrio para ele enquanto a menina sorve meu leite em grandes goladas, o líquido branco e espesso escorre por seu queixo até empapar a roupinha, eu a enxugo ternamente e sussurro uma canção.

Bethânia Pires Amaro, em O ninho

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