domingo, 20 de outubro de 2024

A lembrada canção

Amor, renova agora,
Na noite, olhos fechados, tua voz
Dói-me no coração
Por tudo quanto chora.
Cantas ao pé de mim, e eu estou a sós.

Não, a voz não é tua
Que se ergue e acorda em mim
Murmúrios de saudade e de inconstância,
O luar não vem da lua
Mas do meu ser afim
Ao mito, à mágoa, à ausência e à distância.

Não, não é teu o canto
Que como um astro ao fundo
Da noite imensa do meu coração
Chama em vão, chama tanto…
Quem, sou não sei... e o mundo?…
Renova, amor, a antiga e vã canção.

Cantas mais que por ti.
Tua voz é uma ponte
Por onde passa, inúmero, um segredo
Que nunca recebi –
Murmúrio do horizonte,
Água na noite, morte que vem cedo.

Assim, cantas sem que existas.
Ao fim do luar pressinto
Melhores sonhos que este da ilusão.

Fernando Pessoa, em Poesias inéditas e poemas dramáticos 

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