domingo, 1 de setembro de 2024

A Confraria dos Espadas


Fui membro da Confraria dos Espadas. Ainda me lembro de quando nos reunimos para escolher o nome da nossa Irmandade. Argumentei, então, que era importante para nossa sobrevivência que tivéssemos nome e finalidade respeitáveis, dei como exemplo o que ocorrera com a Confraria de São Martinho, uma associação de apreciadores de vinho que, como o personagem do Eça, venderiam a alma ao diabo por uma garrafa de Romanée-Conti 1858, mas que ficou conhecida como uma fraternidade de bêbedos e, desmoralizada, fechou suas portas, enquanto a Confraria do Santíssimo, cujo objetivo declarado é promover o culto de Deus sob a invocação do Santíssimo Sacramento, continuava existindo. Ou seja, precisávamos ter título e objetivo dignos. Meus colegas responderam que a sociedade era secreta, que de certa forma ela já nascia (isso foi dito ironicamente) desmoralizada, e que seu nome não teria a menor importância, pois não seria divulgado. Acrescentaram que a maçonaria e o rosa-cruzismo tinham originalmente títulos bonitos e respeitáveis objetivos filantrópicos e acabaram sofrendo todo tipo de acusação, de manipulação política a sequestro e assassinato. Eu insisti, pedi que fossem sugeridos nomes para a Confraria, o que acabou sendo feito. E passamos a examinar as várias propostas sobre a mesa. Depois de acaloradas discussões, sobraram quatro nomes. Confraria da Boa Cama foi descartado por parecer uma associação de dorminhocos; Confraria dos Apreciadores da Beleza Feminina, além de muito longo, foi considerado reducionista e esteticista, não nos considerávamos estetas no sentido estrito, Picasso estava certo ao odiar o que denominava jogo estético do olho e da mente manejados pelos connaisseurs que “apreciavam” a beleza e, afinal, o que era “beleza”? Nossa confraria era de Fodedores e, como disse o poeta Whitman num poema corretamente intitulado “A Woman Waits for Me”, sexo contém tudo, corpos, almas, significados, provas, purezas, delicadezas, resultados, promulgações, canções, comandos, saúde, orgulho, mistério maternal, leite seminal, todas as esperanças, benefícios, doações e concessões, todas as paixões, belezas, delícias da terra. Confraria dos Mãos Itinerantes, sugerido por um dos poetas do nosso grupo (tínhamos muitos poetas entre nós, evidentemente), que ilustrou sua proposta com um poema de John Donne — “Seduction. License my roving hands, and let them go before, behind, between, above, below” — ainda que pertinente pela sua singeleza ao privilegiar o conhecimento através do tato, foi descartado por ser um símbolo primário dos nossos objetivos. Enfim, depois de muita discussão, acabou sendo adotado o nome Confraria dos Espadas. Os Irmãos mais ricos foram seus principais defensores: os aristocratas são atraídos pelas coisas do submundo, são fascinados pelos delinquentes, e o termo Espada como sinônimo de Fodedor veio do mundo marginal, espada fura e agride, assim é o pênis tal como o veem, erroneamente, bandidos e ignorantes em geral. Sugeri que se algum nome simbólico fosse usado por nós deveria ser o de uma árvore ornamental cultivada por causa de suas flores, afinal o pênis é conhecido vulgarmente como pau ou cacete, pau é o nome genérico de qualquer árvore em muitos lugares do Brasil (mas, corretamente, não o é dos arbustos, que têm um tronco frágil) só que meu arrazoado foi por água abaixo quando alguém perguntou que nome a Confraria teria, Confraria dos Paus?, dos Caules?, e eu não soube responder. Espada, conforme meus opositores, tinha força vernácula, e a rafameia mais uma vez dava sua valiosa contribuição ao enriquecimento da língua portuguesa.
Como membro da Confraria dos Espadas eu acreditava, e ainda acredito, que a cópula é a única coisa que importa para o ser humano. Foder é viver, não existe mais nada, como os poetas sabem muito bem. Mas era preciso uma Irmandade para defender esse axioma absoluto? Claro que não. Havia preconceitos, mas esses não nos interessavam, as repressões sociais e religiosas não nos afetavam. Então qual foi o objetivo da fundação da Confraria? Muito simples, descobrir como atingir, plenamente, o orgasmo sem ejaculação. A Rainha de Aragão, como conta Montaigne, bem antes desse antigo reino unir-se ao de Castela, no século XV, depois de madura deliberação do seu Conselho privado, estabeleceu como regra, tendo em vista a moderação requerida pela modéstia dentro dos casamentos, que o número de seis cópulas por dia era um limite legal, necessário e competente. Ou seja, naquele tempo um homem e uma mulher copulavam, de maneira competente e modesta, seis vezes por dia. Flaubert, para quem “une once de sperme perdue fatigue plus que trois litres de sang” (já falei disso num dos meus livros), achava as seis cópulas por dia humanamente impossíveis, mas Flaubert não era, sabemos, um Espada. Ainda hoje acredita-se que a única maneira de gozar é através da ejaculação, apesar de os chineses há mais de três mil anos afirmarem que o homem pode ter vários orgasmos seguidos sem ejacular, e assim evitar a perda da onça de esperma que fatiga mais que uma hemorragia de três litros de sangue. (Os franceses chamam de petite mort a exaustão que se segue à ejaculação, por isso um dos seus poetas dizia que a carne era triste, mas os brasileiros dizem que a carne é fraca, em todos os sentidos, o que me parece mais pungente, é pior ser fraco do que triste.) Calcula-se que um homem ejacula em média cinco mil vezes durante sua vida, expelindo um total de un trilhão de espermatozóides. Tudo isso para que e por quê? Porque na verdade somos ainda uma espécie de macaco, e todos funcionamos como um banco genético rudimentar quando bastaria que apenas alguns assim operassem. Nós, da Confraria dos Espadas, sabíamos que o homem, livrando-se de sua atrofia simiesca, apoiado pelas peculiares virtudes de sua mente (nosso cérebro não é, repito, o de um orangotango), poderia ter vários orgasmos consecutivos sem ejacular, orgasmos que lhe dariam ainda mais prazer do que aqueles de ordem seminal, que fazem do homem apenas um instrumento cego do instinto de preservação da espécie. E esse resultado nos encheu de alegria e orgulho, havíamos conseguido, através de elaborados e penosos exercícios físicos e espirituais, alcançar o Múltiplo Orgasmo Sem Ejaculação, que ficou conhecido entre nós pelo acrônimo MOSE. Não posso revelar que “exercícios” eram esses pois o juramento de manter o segredo mo impede. A rigor eu nem mesmo poderia falar do assunto, ainda que desta maneira restrita.
A Confraria dos Espadas funcionou muito bem durante os seis meses que se seguiram à nossa extraordinária descoberta. Até que um dia um dos nossos Confrades, poeta como eu, pediu a convocação de uma Assembleia Geral da Confraria para relatar um assunto que considerava de magna importância.
A mulher dele percebendo a não ocorrência de emissio seminis durante a cópula, concluíra que isso podia ter várias razões, que em síntese seriam: ou ele estava economizando o esperma para outra mulher, ou então fingia sentir prazer quando na verdade agia mecanicamente como um robô sem alma. A mulher chegou mesmo a suspeitar que nosso colega fizera um implante no pênis para mantê-lo sempre rijo, alegação que ele facilmente provou ser infundada. Enfim, a mulher do poeta deixara de sentir prazer na cópula, na verdade ela queria a viscosidade do esperma dentro da sua vagina ou sobre a sua pele, essa secreção pegajosa e branca lhe era um símbolo poderoso de vida. Sexo, como queria Whitman, afinal incluía o leite seminal. A mulher não disse, mas com certeza o exaurimento dele, macho, representava o fortalecimento dela, fêmea. Sem esses ingredientes ela não sentia prazer e, aqui vem o mais grave, se ela não sentia prazer o nosso confrade também não o sentia, pois nós, da Confraria dos Espadas, queremos (necessitamos) que nossas mulheres gozem também. Esse é o nosso moto (não o cito em latim para não parecer pernóstico, já usei latim antes): Gozar Fazendo Gozar. Ao fim da explanação do nosso Confrade a assembleia ficou em silêncio. A maioria dos membros da Confraria estava presente. Acabávamos de ouvir palavras inquietantes. Eu, por exemplo, não ejaculava mais. Desde que conseguira dominar o Grande Segredo da Confraria, o MOSE, eu não produzia mais uma gota sequer de sêmen, ainda que todos os meus orgasmos fossem muito mais prazerosos. E se a minha mulher, que eu amava tanto, pedisse, e ela poderia fazer isso a qualquer momento, que eu ejaculasse sobre seus delicados seios alabastrinos? Perguntei a um dos médicos da Confraria — havia vários médicos entre nós — se eu poderia voltar a ejacular. A medicina nada sabe sobre sexo, essa é uma lamentável verdade, e o meu colega respondeu que isso seria muito difícil, tendo em vista que eu, como todos os outros, criara uma forte dependência àquele condicionamento físico e espiritual; que ele já tentara, usando todos os recursos científicos a que tinha acesso, anular essa função sem o conseguir. Todos nós, ao ouvir a terrível resposta, ficamos extremamente consternados. Logo outros Confrades disseram que enfrentavam o mesmo problema, que suas mulheres começavam a achar artificiosa, ou então assustadora, aquela inesgotável ardência. Acho que me tornei um monstro, disse o poeta que trouxera o problema ao nosso exame coletivo. E assim terminou a Confraria dos Espadas. Antes da debandada fizemos todos um juramento de sangue de que jamais revelaríamos o segredo do Múltiplo Orgasmo Sem Ejaculação, que ele seria levado para o nosso túmulo. Continuamos tendo uma mulher à nossa espera, mas essa mulher tem de ser trocada constantemente, antes de descobrir que somos diferentes, estranhos, capazes de gozar com infinita energia sem derramamento de sêmen. Não podemos nos apaixonar, pois nossas relações são efêmeras. Sim, eu também me tornei um monstro e meu único desejo na vida é voltar a ser um macaco.

Rubem Fonseca, em Os cem melhores contos do século

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