sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Dos três males


1.

Num sonho, no último sonho da manhã, eu estava hoje num promontório — além do mundo, eu segurava uma balança e pesava o mundo.
Oh, cedo demais chegou a aurora: acordou-me com seu ardor, a ciumenta! Sempre tem ciúmes de como ardem meus sonhos matinais.
Mensurável para aquele que tem tempo, sopesável para um bom pesador, sobrevoável para asas fortes, adivinhável para divinos quebra-nozes: assim meu sonho encontrou o mundo: —
Meu sonho, um audaz velejador, meio barco, meio ventania, silencioso como as borboletas, impaciente como os falcões: mas como teve hoje tempo e paciência para pesar o mundo!
Teria lhe falado em segredo minha sabedoria, minha risonha e alerta sabedoria diurna, que zomba de todos os “mundos infinitos”? Pois ela diz: “Onde há força, também o número se torna senhor: ele tem mais força”.
Com que segurança olhava meu sonho para esse mundo finito, não com anseio do novo ou do velho, não com temor ou com rogos: —
como se uma maçã inteira se ofertasse à minha mão, uma madura maçã de ouro, com pele fresca, suave e sedosa: — assim se me ofertava o mundo: —
como se uma árvore me acenasse, frondosa, voluntariosa, curvada para encosto e até para apoio do pé do caminhante cansado: assim se achava o mundo em meu promontório: —
como se mãos graciosas me trouxessem um relicário — um relicário aberto, para encanto de olhos pudicos e adoradores; assim vinha hoje o mundo ao meu encontro: —
não enigma bastante para afugentar o amor dos homens, não solução suficiente para adormecer a sabedoria dos homens: — uma coisa humanamente boa era hoje para mim o mundo, do qual tanta coisa ruim se fala!
Como agradeço a meu sonho matinal eu haver assim pesado o mundo hoje cedo! Como algo humanamente bom veio ele a mim, este sonho e consolador do coração!
E, para que eu faça como ele durante o dia, dele aprendendo e imitando o que é melhor: vou agora pôr na balança as três coisas mais ruins e sopesá-las humanamente bem. —
Quem ali ensinou a abençoar, também ensinou a amaldiçoar: quais são, no mundo, as três coisas mais bem amaldiçoadas? Essas eu porei na balança.
Volúpia, ânsia de domínio, egoísmo: essas três foram até agora as mais bem amaldiçoadas e mais terrivelmente caluniadas e aviltadas — essas três vou agora sopesar humanamente bem.
Pois bem! Aqui está meu promontório e ali o mar: esse rola até meus pés, peludo, lisonjeador, o velho, fiel monstro-cão de cem cabeças que eu amo.
Pois bem! Aqui vou segurar a balança sobre o mar que rola: e também uma testemunha escolho, para que observe — a ti, árvore solitária, a ti, de forte aroma e ampla copa, que eu amo! —
Por qual ponte vai o hoje para o algum dia? Sob qual coação o que é alto se obriga a descer ao que é baixo? E o que diz ao mais alto para ainda — crescer mais? —
Agora a balança está quieta e equilibrada: três difíceis questões eu lancei, três difíceis respostas estão no outro prato.

Friedrich Nietzsche, em Assim falou Zaratustra

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