domingo, 28 de julho de 2024

Trecho


Realmente nada aconteceu naquela tarde cinzenta de abril. Tudo, no entanto, prognosticava um grande dia. Ele lhe avisara que sua vinda constituiria o grande fato, o acontecimento máximo de suas vidas. Por isso ela entrou no bar da Avenida, sentou-se junto a uma das mesinhas da janela, para vê-lo, mal apontasse na esquina. O garçom limpou a mesa e perguntou-lhe o que desejava. Dessa vez justamente não precisava ficar tímida e ter medo de cometer uma gafe. Estava esperando alguém, respondeu. Ele olhou-a um momento. “Será que tenho um ar tão abandonado que não posso estar esperando alguém?” disse-lhe:
Espero um amigo.
E sabia agora que a voz sairia perfeita: calma e negligente. (Ora não era a primeira vez que esperava alguém.) Ele limpou uma nódoa inexistente no canto da mesinha de mármore e, após uma demora calculada, retrucou, sem ao menos olhá-la:
Sim, senhora.
Acomoda-se melhor na cadeira estreita. Cruza as pernas com certa elegância que, Cristiano mesmo dissera, é-lhe natural. Segura a bolsa com as duas mãos, suspira descansadamente. Pronto. É só esperar.
Flora gosta muito de viver. Muito mesmo. Nessa tarde, por exemplo, apesar do vestido apertar-lhe a cintura e ela esperar com horror o momento em que tiver que se levantar e atravessar o comprido recinto com a saia justa demais, apesar de tudo isto acha bom estar sentada ali, no meio de tanta gente, para tomar café com bolinhos, como todos. Tem a mesma sensação de quando era pequena e a mãe lhe dava as panelinhas “de verdade” para encher de comida e brincar de “dona de casa”.
Todas as mesinhas do café estão repletas. Os homens fumam grossos charutos e os rapazes, metidos em amplos jaquetões, se oferecem cigarros. As mulheres bebem refrescos e mordem doces com a delicadeza de roedores, para não espalhar o “batom”. Faz um calor muito forte e os ventiladores zumbem nas paredes. Se ela não estivesse de preto poderia se imaginar num café africano, em Dakar ou Cairo, entre ventarolas e homens morenos discutindo negócios ilícitos, por exemplo. Mesmo entre espiões, quem sabe? metidos naqueles lençóis árabes.
Naturalmente era meio absurdo estar brincando de pensar justamente nessa tarde. Justamente quando Cristiano lhe prometera o maior dia do mundo e justamente, oh! Justamente quando tinha medo que nada sucedesse... simplesmente pela ausência de Cristiano... Era absurdo, mas sempre que lhe aconteciam “coisas” ela intercalava essas coisas com pensamentos perfeitamente fúteis e despropositados. Quando Nenê ia nascer e ela estava no hospital, deitada, branca e morta de medo, acompanhou obstinadamente o voo de uma mosca em torno de uma xícara de chá e chegou a pensar, dum modo geral, na vida acidentada das moscas. E na verdade, concluíra, acerca desses pequeninos seres há grandes estudos a fazer. Por exemplo: por que é que possuindo um belo par de asas não voam mais alto? Serão impotentes essas asas ou sem ideal as moscas? Outra questão: qual a atitude mental das moscas em relação a nós? E em relação à xícara de chá, aquele grande lago adocicado e morno? Na verdade, aqueles problemas não eram indignos de atenção. Nós é que ainda não somos dignos deles.
Um casal entrou. O homem parou à porta, escolheu demoradamente o lugar, para lá encaminhou-se com a mulher debaixo do braço, o ar feroz de quem se prepara para defender um direito: “Eu pago tanto quanto os outros.” Sentou-se, circundou um olhar de desafio pela sala. A mocinha era tímida e sorriu para Flora, um sorriso de solidariedade de classe.
Bem, o tempo está correndo. Um garçom de bigode louro dirige-se a Flora, segurando acrobaticamente uma bandeja com refresco escuro no copo suado. Sem lhe perguntar nada, pousa a bandeja, aproxima o copo de suas mãos e se afasta. Mas quem pediu refresco, pensa ela angustiada. Fica quieta, sem se mover. Ah! Cristiano, venha logo. Todos contra mim... Eu não quero refresco, eu quero Cristiano! Tenho vontade de chorar, porque hoje é um grande dia, porque hoje é o maior dia de minha vida. Mas vou conter em algum cantinho escondido de mim (atrás da porta? que absurdo) tudo o que me atormentar até a chegada de Cristiano. Vou pensar em alguma coisa. Em quê? “Meus senhores, meus senhores! Eis-me aqui pronta para a vida! Meus senhores, ninguém me olha, ninguém nota que eu existo. Mas, meus senhores, eu existo, eu juro que existo! Muito, até. Olhem, vocês, que têm esse ar de vitória, olhem: eu sou capaz de vibrar, de vibrar como a corda esticada de uma harpa. Eu posso sofrer com mais intensidade do que todos os senhores. Eu sou superior. E sabem por quê? Porque sei que existo.” E se bebesse o refresco? Pelo menos aquela mulher que a olha como se ela não estivesse ali, como se ela fosse uma mesinha vazia, verá que ela faz alguma coisa.
Escolhe com cuidado uma palhinha, desembrulha-a com gestos negligentes e chupa o primeiro gole. Ainda bem que Nenê não veio. O refresco é muito gelado e tudo que Nenê vê quer provar. Quando Cristiano vier, perguntará antes por ela ou por Nenê? Cristiano disse que ambas eram duas crianças, que no grupo ele era o único adulto. Mas isso não entristece muito Flora. Uma vez, logo no princípio, ele a deixou sentada a um canto do quarto e pôs-se a passear de um lado para outro, esfregando o queixo. Depois parou diante dela, olhou-a um tempo e disse: “Mas é uma menina!” No entanto, depois se acostumou e Flora sempre lhe agradava. Mesmo porque desde pequena sabia brincar de tudo. Com o Ruivo brincava de soldado que mata, com a vizinha debaixo era carroceiro, no colégio bancava a índia que tem muitos filhos, e ainda professora, dona de casa, vizinha má, mendiga, aleijada e quitandeira. Com o Ruivo brincava de soldado, obrigada pelas circunstâncias, porque precisava conquistar sua admiração.
Assim, não foi difícil brincar de amante de Cristiano. E brincou tão bem que ele, antes de partir, lhe disse:
Sabe, você, gurizinha, vale mais do que eu pensava. Não é uma menininha, não. É uma mulher cheia de senso e independência.”
Gostou do elogio de Cristiano como quando ele elogiara seu vestido novo. Ou quando o professor de francês lhe dissera: “Você serez ainde un bon poète!” Ou quando sua mãe dizia: “Quando isso crescer vai prender qualquer um!” Ora, naturalmente que ela sabia fazer diversas coisas e até muito bem-feitas. Mas ela não era nenhuma daquelas personalidades que encarnava para se divertir ou por necessidade. Flora era outra que ninguém descobrira ainda! Eis o mistério.
O refresco faz-lhe um mal horrível. O estômago se contrai em náuseas. Fecha os olhos um momento e vê o líquido escuro em ondas revoltas fluir e refluir, rugindo. E Cristiano não vem. Faz uma hora que está ali. Se Cristiano chegasse naquele momento mandaria buscar qualquer coisa amarga e as náuseas desapareceriam. Depois ele diria orgulhoso: “Nem sei mesmo o que você faria sozinha. Você arranja coisas justamente no momento impróprio.” E por que de repente esse gosto de café na boca? Acena para o garçom. “Água gelada”, pede. Depois do primeiro gole, anima-se:
De que era o refresco?
De café, senhorita.
Ah, de café. Uh, piorou. O garçom a encara com curiosidade e ironia:
Está melhor, mademoiselle?
Sem dúvida, eu não sentia coisa alguma.
Beba uma xícara de café quente que passa tudo, continuou ele irredutível.
Traga, por favor.
Cristiano, onde está você? Eu sou pequena, meus senhores, no fundo eu sou do tamanho de Nenê. Não sabem quem é Nenê? Pois ela é loura, tem os olhos pretos e Cristiano diz que não se surpreende ao ver sua carinha muito suja. Diz que no nosso quarto desarrumado, as flores frescas, o rostinho de Nenê e meu ar de ‘pobre querida’ são indivisíveis. Mas há uma coisa no meu estômago. E Cristiano não vem. Se Cristiano não vier? A dona da casa onde moramos, meus senhores, jura como é frequente o abandono de moças com filhos. Conhece até três casos. Que dizem? Oh, não fumem agora.”
O garçom vem com o café. Tem um lindo bigode louro.
Se eu fosse a senhora, procurava me livrar do refresco. Tem muita gente que enjoa com refresco de café. É só botar dois dedos no céu da boca. O toalete é à esquerda.
Flora volta de lá humilhada e não ousa encarar o bigode louro. Recosta-se na cadeira e sente-se miseravelmente bem.
Uma aragem fresca penetra pelas janelas. “Declarações de Mussolini. Suicídio no Leblon! Olhe a Noite!” Longínquos sons de buzina. Cristiano perdeu o trem ou me abandonou para sempre.
O café tornou-se familiar aos seus olhos. Os garçons são afinal uns homens bobos e muito ocupados. Estão ajeitando as cadeiras no estrado da orquestra, limpando o piano. Fregueses de outra classe, da classe dos que depois do banho e do jantar “precisam gozar a vida enquanto são moços; e para que se tem dinheiro?” instalam-se às mesinhas.
Quer dizer que eu estou perdida”, pensa Flora.
Ouve de início umas pancadinhas surdas, ritmadas, singulares e misteriosas, subindo do estrado da orquestra. Em efervescência crescente, como animaizinhos borbulhando em meio desconhecido, vai-se acentuando o ritmo. E de repente, do último negro da segunda fila, ergue-se um grito selvagem, prolongado, até morrer num queixume doce. O mulato da primeira fila contorce-se numa reviravolta, seu instrumento aponta para o ar e responde com um “bu-bu” rouco e infantil. As pancadinhas parecem homens e mulheres gingando num terreiro da África. Súbito, silêncio. O piano canta três notas soltas e sérias. Silêncio.
A orquestra, em movimentos suaves, quase imóvel, agachada, desliza um fox-blue pianíssimo, insinuante como uma fuga.
Alguns pares saíram enlaçados.
Estou aqui há tanto tempo, há tanto tempo! pensa Flora e sente que deve chorar. Quer dizer que estou perdida. Comprime a testa com as mãos. Que é que vem agora? O garçom tem pena e vem lhe dizer que pode esperar quanto quiser. Obrigada. Vê-se no espelho. Mas ela é esta que está ali? é essa, de cara de coelho assustado, quem está pensando e esperando? (De quem é essa boquinha? De quem são esses olhinhos? Seus, não me amole.) Se eu não procurar me salvar, afogo-me. Pois se o Cristiano não vier, quem dirá a toda essa gente que eu existo? E se eu, de repente, gritar pelo garçom, pedir papel e tinta e disser: Meus senhores, vou escrever uma poesia! Cristiano, querido! Juro que eu e Nenê somos suas.
Vejam só: Debussy era um músico-poeta, mas tão poeta que um só dos títulos de suas suítes fazem você se deitar na relva do jardim, os braços sob a cabeça, e sonhar. Vejam só: Sinos entre folhas. Perfumes da noite... Vejam só... gritou uma mulher magra na mesa vizinha, batendo com as costas das mãos na mesa, como se dissesse: “Eu lhe garanto, agora é noite. Não discuta.”
Tolice, Margarida, retrucou um dos homens friamente, tolice. Ora músico-poeta... Ora veja...
Flora pediria papel e escreveria:

Árvores silenciosas
perdidas na estrada.
Refúgio manso
de frescura e sombra.”

Cristiano não virá. Um homem se aproxima. Que há?
Hein?
Pergunto se deseja dançar, continua. Pisca os olhos míopes com um ar tolo e curioso.
Oh, não... Realmente, não... eu...
Ele continua a olhá-la.
Eu, francamente, não posso... Oh, talvez mais tarde... Espero um amigo.
Ele ainda parado. Que fazer com aquele entulho? Meu Deus, os meus olhos.
Eu não...
Por favor, madame, já entendi, diz o homem ofendido.
E se afasta. O que foi que aconteceu, afinal? Não sei, não sei. Se eu não abaixo o rosto, veem os meus olhos. Árvores silenciosas perdidas na estrada. Oh, com certeza eu não choro por causa do homem míope. Também não é por Cristiano que nunca mais virá. É por essa mulher suave, é porque Nenê é linda, linda, é porque essas flores têm um perfume longínquo. Refúgio manso de frescura e sombra. “Meus senhores, agora justamente que eu tinha tanto para dizer, não sei me exprimir. Sou uma mulher grave e séria, meus senhores. Tenho uma filha, meus senhores. Poderia ser um bom poeta. Poderia prender quem eu quisesse. Sei brincar de tudo, meus senhores. Poderia me levantar agora e fazer um discurso contra a humanidade, contra a vida. Pedir ao governo a criação de um departamento de mulheres abandonadas e tristes, que nunca mais terão o que fazer no mundo. Pedir qualquer reforma urgente. Mas não posso, meus senhores. E pela mesma razão nunca haverá reformas. É que em vez de gritar, de reclamar, só tenho vontade de chorar bem baixinho e ficar quieta, calada. Talvez não seja só por isso. Minha saia é curta e apertada. Eu não vou me levantar daqui. Em compensação tenho um lenço pequeno, de bolinhas vermelhas, e posso muito bem enxugar o nariz sem que os senhores, que nem sabem que eu existo, vejam.”
Na porta surge um homem grande, com jornais na mão. Olha para todos os lados procurando alguém. Vem esse homem exatamente na direção de Flora. Comprime sua mão, senta-se. Olha-a com olhos brilhantes e ela ouve confusamente palavras soltas. “Bichinha, coitadinha... o trem... Nenê... querida...”
Tolice Margarida, tolice, diz o homem na mesa vizinha.
Quer alguma coisa? pergunta Cristiano. Refresco?
Oh, não, desperta Flora. O garçom sorri.
Cristiano, completamente feliz, aperta-lhe levemente o joelho por baixo da mesa. E Flora resolve que nunca, nunca mais mesmo, há de perdoar Cristiano pela humilhação sofrida. E se ele não tivesse vindo? Ah, então toda essa espera teria desculpa, teria sentido. Mas, assim? Nunca, nunca. Revoltar-se, lutar, isso sim. É preciso que aquela Flora desconhecida de todos, apareça, afinal.
Flora, eu tive tanta, tanta saudade de você.
Meu bem..., diz Flora docemente, esquecendo a saia curta e apertada.

Clarice Lispector, em Todos os contos

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