quinta-feira, 20 de junho de 2024

A leitura interrompida

O tempo corre por entre nossos dedos como água — diz um personagem, aliás muito sábio (e ainda por cima imperial) de um livro de William Golding que estou lendo para enganar outros cuidados. Pergunto-me: por que diz ele que o tempo corre como água e não como areia? E por que não correria como o vento, que leva, sobre a areia e a água, a vantagem de ser invisível e impalpável como o próprio tempo? Essas comparações permutáveis são uma denúncia de truque poético. Não importa que o livro de Golding seja em prosa: quem faz comparações está fazendo poesia. Essa permutabilidade nota-se não raro nos versos crioulos, com as suas imagens obrigatoriamente regionais:
Do potreiro de teus olhos
nunca mais me apartarei.”
Mas por que não da mangueira de teus olhos ou, melhor ainda, da querência de teus olhos?Poesia, mesmo, é quando a imagem é insubstituível, como o fez Garcia Lorca, na “Ode a Walt Whitman”, ao retratar em seu verso inicial a figura do poeta:
Viejo lindo como la nieve!”

Mário Quintana, em Porta giratória

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