domingo, 28 de abril de 2024

Capítulo 134 | Cinquenta anos

Não lhes disse ainda, – mas digo-o agora, – que quando Virgília descia a escada, e o oficial de marinha me tocava no ombro, tinha eu cinquenta anos. Era portanto a minha vida que descia pela escada abaixo, – ou a melhor parte, ao menos, uma parte cheia de prazeres, de agitações, de sustos, – capeada de dissimulação e duplicidade, – mas enfim a melhor, se devemos falar a linguagem usual. Se, porém, empregamos outra sublime, a melhor parte foi a restante, como eu terei honra de lhes dizer nas poucas páginas deste livro.
Cinquenta anos! Não era preciso confessá-lo. já se vai sentindo que o meu estilo não é tão lesto como os primeiros dias. Naquela ocasião, cessado o diálogo com o oficial de marinha, que enfiou a capa e saiu, confesso que fiquei um pouco triste. Voltei à sala, lembrou-me dançar uma polca, embriagar-me das luzes, das flores, dos cristais, dos olhos bonitos, e do burburinho surdo e ligeiro das conversas particulares. E não me arrependo; remocei. Mas, meia hora depois, quando me retirei do baile, às quatro da manhã, o que é que fui achar no fundo do carro? Os meus cinquenta anos. Lá estavam eles os teimosos, não tolhidos de frio, nem reumáticos, – mas cochilando a sua fadiga, um pouco cobiçosos de cama e de repouso. Então,  e vejam até que ponto pode ir a imaginação de um homem, com sono, – então pareceu-me ouvir de um morcego encarapitado no tejadilho: Senhor Brás Cubas, a rejuvenescência estava na sala, nos cristais, nas luzes, nas sedas, – enfim, nos outros.

Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas

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