quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

O espelho de vento-e-lua

Em um ano, o sofrimento de Kia Yui se agravou. A imagem da inacessível senhora Fênix consumia seus dias; os pesadelos e a insônia, as suas noites.
Uma tarde, um mendigo taoista pedia esmolas na rua e proclamava que podia curar as doenças da alma. Kia Yui mandou chamá-lo. Disse-lhe o mendigo: “Seu mal não sara com remédios. Tenho aqui algo que o curará se seguir minhas indicações”. Tirou da manga um espelho polido nas duas faces, com a seguinte inscrição: Precioso Espelho de Vento-e-Lua.
Acrescentou o mendigo: “Este espelho vem do Palácio da Fada do Terrível Despertar e tem a virtude de curar os males causados pelos ventos impuros. Evite, porém, olhar o verso. Amanhã voltarei para buscar o espelho e para felicitá-lo por suas melhoras”. Não quis aceitar as moedas que lhe foram oferecidas.
Kia Yui olhou a frente do espelho, e aterrorizado atirou-o longe.
O espelho refletia sua caveira. Amaldiçoou o mendigo e quis olhar o verso do espelho. Lá do fundo, a senhora Fênix, esplendidamente vestida, lhe fazia sinais. Kia Yui sentiu-se arrebatado, atravessou o metal e realizou o ato de amor. Fênix acompanhou-o até a saída.
Quando Kia Yui acordou, o espelho estava ao contrário e novamente lhe mostrava a caveira. Esgotado pelas delícias do lado feliz, Kia Yui não resistiu a tentação de olhá-lo uma vez mais. A senhora Fênix lhe fazia sinais, e ele cruzou o metal novamente e novamente fizeram amor. Isto ocorreu umas quantas vezes. Na última, dois homens o prenderam quando saía e o acorrentaram. “Eu os seguirei”, murmurou, “mas deixem-me levar o espelho”.
Foram suas últimas palavras.
Encontraram-no morto, sobre o lençol manchado.

Tsao Hsue-qin, Sonho do aposento vermelho, in Livro de Sonhos, de Jorge Luís Borges

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