Na
semana seguinte, o tempo esfriou bem. As manhãs em nossa casa eram
superagitadas, como sempre.
No
quarto, Sarah se maquiava para trabalhar. Papai e Steve gritavam
tchaus. Mamãe limpava o estrago que tínhamos feito na cozinha.
Na
quarta-feira, Rube bateu na minha perna e então me arrastou para o
banheiro, para que a mamãe não visse eu me contorcendo e agonizando
no chão do quarto. Eu ria e chorava, ao mesmo tempo, enquanto ele me
arrastava.
— Você
não quer que a mamãe ouça isso. — Ele cobriu minha boca. —
Lembre-se: se ela contar pro papai, não vou pagar por isso sozinho.
Nós dois é que vamos.
Era
a regra em nossa casa. Sempre que tinha algum problema, todo mundo
aguentava. O coroa iria até o corredor com aquele olhar que dizia
meu dia foi uma bosta, e não volta para casa para ter que aguentar
vocês. Então, daria um tapa com as costas da mão: nas costelas ou
na orelha. Sem perder tempo. Se o Rube levasse, eu levava também.
Então, por pior que fosse a briga, ninguém além de nós tomava
conhecimento dela. Normalmente, já sentíamos bastante dor do jeito
que era. A última coisa que queríamos era o papai metido nisso.
— Está
bem, está bem. — Baixei a voz para falar com Rube, quando
estávamos em segurança no banheiro. — Caramba, por que você fez
isso?
— Não
sei.
— Não
acredito. — Ergui os olhos para o sujeito idiota. — Você me
acertou na perna por nada. Estou chocado, isso, sim.
— Eu
sei. — Ele estava sorrindo, e isso me deu vontade de empurrá-lo
para a banheira e estrangulá-lo, mas não ia adiantar.
Sarah
estava batendo na porta. — Me deixa entrar!
— Está
bem!
— Agora!
— Está
bem!
No
caminho para a escola, encontramos alguns colegas de Rube. Simon.
Jeff. Cheese.
Nós
os convidamos para ir, lá em casa, à tarde, para um jogo que
chamamos de Um Soco. Acontece que só temos um par de luvas de boxe
na garagem; por isso, o jogo é uma luta de boxe na qual os dois
lutadores só têm uma luva. Um Soco.
Jogamos
na própria quarta-feira, e estávamos a fim. Muito a fim. A fim de
bater. A fim de apanhar. A fim de fazer aquilo, mesmo que
significasse não passar um tempo com o restante da família. Quer
dizer, você ficaria surpreso em saber que dá para disfarçar um
machucado ficando no canto mais escuro da sala.
Rube
é canhoto, então, prefere ficar com a luva esquerda. Eu fico com a
direita, que é a minha mão boa. São três rounds, e o vencedor é
declarado. Algumas vezes, é fácil dizer quem vence. Outras, não.
Essa
tarde, em particular, foi bem ruim para mim.
Pegamos
as luvas no pátio e, primeiro, foi Rube contra mim. Rube e eu sempre
fazíamos as melhores lutas. Sem regras. Tudo que eu precisava era
dar um bom soco, e, a partir daí, Rube tentar acertar minha cabeça.
Um bom soco de Rube me fazia ver estrelas e ficar sem ar. Eu só
tentava ficar de pé sempre.
Então,
“Din-don”, fez Cheese sem entusiasmo, e a luta começou.
Fizemos
um círculo no pequeno pátio, que era metade concreto, metade grama.
Era um cercado urbano, não muito maior que um ringue de boxe de
verdade. Não tinha muito espaço para se desviar. E tinha o concreto
duro também...
— Vamos.
— Rube deu um passo e foi direto na minha cabeça, mudou de direção
e acertou a minha costela. Em seguida, deu um golpe de verdade na
minha cabeça e errou por pouco a orelha. Foi então que vi ele
baixar a guarda, aí mandei uma direita bem no nariz dele. Entrou.
Incrível.
— Uau!—
Comemorou Simon, mas Rube continuou concentrado. Deu uns passos de
novo, sem medo, e não se preocupou com meu balanço arrogante. Ele
se inclinou e me atingiu no olho. Bloqueei o golpe e tentei
acertá-lo. Ele se desviou, me girou e empurrou contra a parede, me
puxando em seguida. Me empurrou de novo. Me botou de pé na grama e
acertou o punho fechado no meu ombro. Sim. Ele acertou. Ah, estava
tudo bem. Era como um machado abrindo as minhas juntas, e depois
minha cabeça foi atingida pela mão esquerda dele. Ela se lançou
para a frente e parou no meu queixo.
Com
força. Aconteceu.
O
céu desabou.
Fiquei
sem ar.
O
chão oscilou.
O
chão.
O
chão.
Balancei.
Errei.
Rube
riu, sob a barba que estava nascendo.
Ele
riu assim que caí de joelhos, e eu me levantei só um pouco para me
agachar ali. A contagem começou, com prazer.
Rube:
— Um... dois... três...
Quando
voltei a me levantar, e os gritos de Simon, Jeff e Cheese deixaram de
ser murmúrios, só mais uns socos e o primeiro round terminou.
Sentei
no canto do pátio, na sombra.
Segundo
round.
Mais
ou menos a mesma coisa, mas, dessa vez, Rube também caiu.
O
terceiro round foi briga de cachorro grande.
Nós
dois começamos a dar golpes duros, e me lembro de resvalar na
costela do Rube umas sete ou oito vezes e de receber, pelo menos, uns
três bons socos na bochecha. Foi violento. O vizinho do lado
esquerdo tinha papagaios na gaiola e um cachorro anão. As aves
irritaram por cima da cerca, e o cachorro anão latia e pulava na
cerca, enquanto meu irmão e eu lutávamos até cair desmaiados. O
punho dele era um borrão grande e marrom que continuava a se
projetar do braço comprido, me atingindo e cantando, enquanto colava
minha pele aos ossos. Tudo parecia dobrado, instável, tremido, e
adquiria uma cor laranja-escura, e eu podia sentir aquele gosto de
metal escorrendo do nariz para o lábio, passando pelos dentes e
ficando na língua. Ou será que eu estava sangrando na boca? Não
sei. Não sabia de nada até me agachar de novo, ficar tonto e achar
que ia vomitar.
— Um...
dois...
Dessa
vez, a contagem não significava nada. Ignorei.
Dessa
vez, só o que fiz foi me sentar apoiado na cerca de trás até me
recuperar.
— Tudo
bem? — perguntou Rube pouco depois, com o cabelo espesso balançando
sobre os olhos dele.
Fiz
que sim com a cabeça.
Estava
bem.
Ao
voltar para casa, chequei os danos, e não parecia nada bom.
Não
tinha sangue no meu nariz. Ele vinha da minha boca, e eu tinha um
olho roxo. Dos bem escuros.
Não
adiantava esconder. Não hoje. Não tinha sentido. Mamãe ia matar a
gente.
Foi
o que ela fez.
Deu
uma olhada em mim e falou: — E o que foi que aconteceu com você? —
Ah, nada.
Então
viu Rube, que tinha o lábio meio inchado.
— Ai,
garotos. — Balançou a cabeça. — Vocês me dão nojo, sério.
Não conseguem ficar uma semana sem machucar um ao outro.
Não.
Não conseguíamos.
Estávamos
sempre machucando um ao outro: no boxe ou jogando futebol na sala com
um par de meias enrolado.
Melhor
ficarem longe um do outro, por enquanto — ordenou, e obedecemos
àquela ordem. Tentamos mesmo ouvir a nossa mãe, pois ela era durona
e fazia faxina na casa de gente rica para viver, trabalhando muito
para que tivéssemos uma boa casa. A gente não gostava muito quando
ela se decepcionava com a gente.
A
decepção ia continuar.
Ficou
muito pior durante o dia seguinte porque alguns dos meus professores
ficaram um pouco preocupados com o estado do meu rosto e com o modo
como eu sempre parecia ter um novo hematoma, ferida ou arranhão
nele. Me fizeram um monte de perguntas esquisitas sobre como iam as
coisas em casa, como eu lidava com meus pais e todo tipo de coisa. Só
disse a eles que me dava bem com todo mundo e que as coisas estavam
do mesmo jeito em casa. Muito bem.
— Tem
certeza? — perguntaram.
Como
se eu fosse mentir. Talvez devesse ter dito a eles que tinha batido
na porta ou levado um tombo na escada do porão. Eles teriam rido um
bocado. Na verdade, só disse a eles que eu lutava boxe como um
passatempo, e que ainda não era muito bom.
Sem
dúvida, não acreditaram no que eu disse porque, na tarde de
quinta-feira, minha mãe recebeu um telefonema da escola, solicitando
uma reunião com o diretor e a assistente social.
Ela
foi na sexta-feira, na hora do almoço, e quis ter certeza de que
Rube e eu também estávamos lá.
Do
lado de fora, pouco antes de entrar no gabinete da assistente social,
falou: — Esperem aqui e não se mexam até eu dizer que podem
entrar.
Concordamos
e nos sentamos, e uns dez minutos depois, ela abriu a porta e chamou:
— Agora. Entrem.
Nós
nos levantamos e entramos.
Dentro
do gabinete, o diretor e a assistente social nos fitavam com um tipo
de repugnância controlada e divertida. E mamãe também, e a razão
daquele olhar ficou clara quando ela enfiou a mão dentro da bolsa e
retirou nossas luvas de boxe, dizendo animada: — Muito bem, podem
colocar.
— Ai,
caramba, mãe — protestou Rube.
— Não,
não, não — insistiu o sr. Dennison, o diretor. — Estamos muito
interessados em ver isso.
— Vamos,
garotos — disse mamãe em tom irônico. — Não fiquem
envergonhados...
Mas
essa era a questão. Nos intimidar. Nos humilhar. Nos envergonhar.
Dava para ver o que estava acontecendo, quando cada um de nós
colocou a luva.
— Meus
filhos — falou minha mãe para o diretor e, então, para nós. —
Meus filhos.
A
expressão no rosto dela era de amarga decepção. Parecia que ia
chorar. As rugas ao redor dos olhos dela eram leitos de rio secos e
escuros, esperando. Nenhuma lágrima rolou. Ela só olhou. Para
longe. Então, decidida, fixou os olhos em nós e parecia pronta a
cuspir em nossos sapatos e nos renegar. Eu não a culpava.
— Então,
é isso que eles fazem — disse minha mãe para eles. — Lamento
por tudo isso, por desperdiçar o tempo dos senhores assim.
— Está
tudo bem — falou Dennison, e ela apertou a mão dele e da mulher da
assistência social.
— Desculpem
— falou mais uma vez e saiu, sem nem mesmo voltar a olhar para nós.
Ela nos deixou parados ali, usando as luvas, feito dois animais
ridículos no inverno.
Não
me pergunte o porquê, mas estou na Rússia, sentado num ônibus, em
Moscou.
Está
lotado.
O
ônibus se move lentamente.
Está
congelando.
O
cara perto de mim está sentado próximo à janela e segura um tipo
de roedor que sibila para mim, mesmo que eu só esteja olhando para
ele. O cara me dá uma cutucada, diz alguma coisa e ri. Quando
pergunto se é Moscou mesmo (porque, claro, eu nunca estive lá),
começa a conversar comigo por um longo tempo, o que é um milagre,
pois não posso dizer nem uma palavra, já que não falo a língua
dele.
Ele
é inacreditável.
Falando.
Rindo,
e, no fim, gosto de verdade do cara. Rio de todas as piadas dele
pelas linhas que lhe jazem no rosto.
— Ônibus
lento — digo. Claro que ele não entende nada.
Rússia.
Dá
para dizer que diabos estou fazendo na Rússia? O ônibus também
está congelando. Já disse isso? Já? Olha, sério, está, e todas
as janelas estão embaçadas.
Tremo.
Tremo
no banco até não aguentar mais. De pé.
Tento
me levantar, mas pareço colado ao banco. É como se tivesse ficado
congelado a ele.
— Levanta/
— digo para mim mesmo, mas não consigo. Não consigo! Então, vejo
alguém em meio à multidão no corredor, mancando na minha direção.
Não.
Ai,
não.
É
uma velha, e, na Rússia, as velhas cobram os direitos delas de
verdade. Pior ainda, ela está olhando direto para mim. Direto para
mim.
— Me
ajuda a levantar — falo para o cara perto de mim. Imploro, mas ele
não faz coisa alguma. Aí se vira para dormir, amassando o roedor
contra a janela. O bicho engasga.
Ela
ainda está vindo. Não.
Um
pesadelo.
Faz
uma careta e fixa os olhos em mim, me dizendo em silêncio para sair
do banco.
— Levanta!
— grito para mim mesmo. Não consigo, e ela...
Chega.
Ela
— começa, e a partir daí nada pode interrompê-la. Ela cospe
xingamentos em russo bem na minha cara e ergue os punhos. As
minúsculas mãos ferozes tentam me erguer, segurando minhas roupas,
para me tirar do banco.
— Sinto
muito! — murmuro, mas a velha é a fúria em pessoa, me deixando
mais agitado.
Mais
tarde, estou sentado no corredor, e o fundo da calça ainda está
colado no banco. Um homem de meia-idade fala comigo na minha língua:
— Não devia ter ofendido aquela senhora, garotão.
— Não
brinca? — retruco, tentando manter apele nua longe do chão
congelado.
A
velha sorri com nojo para mim.
Markus Zusak, in O Azarão
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