sexta-feira, 25 de agosto de 2023

O Azarão | 4


Na semana seguinte, o tempo esfriou bem. As manhãs em nossa casa eram superagitadas, como sempre.
No quarto, Sarah se maquiava para trabalhar. Papai e Steve gritavam tchaus. Mamãe limpava o estrago que tínhamos feito na cozinha.
Na quarta-feira, Rube bateu na minha perna e então me arrastou para o banheiro, para que a mamãe não visse eu me contorcendo e agonizando no chão do quarto. Eu ria e chorava, ao mesmo tempo, enquanto ele me arrastava.
Você não quer que a mamãe ouça isso. — Ele cobriu minha boca. — Lembre-se: se ela contar pro papai, não vou pagar por isso sozinho. Nós dois é que vamos.
Era a regra em nossa casa. Sempre que tinha algum problema, todo mundo aguentava. O coroa iria até o corredor com aquele olhar que dizia meu dia foi uma bosta, e não volta para casa para ter que aguentar vocês. Então, daria um tapa com as costas da mão: nas costelas ou na orelha. Sem perder tempo. Se o Rube levasse, eu levava também. Então, por pior que fosse a briga, ninguém além de nós tomava conhecimento dela. Normalmente, já sentíamos bastante dor do jeito que era. A última coisa que queríamos era o papai metido nisso.
Está bem, está bem. — Baixei a voz para falar com Rube, quando estávamos em segurança no banheiro. — Caramba, por que você fez isso?
Não sei.
Não acredito. — Ergui os olhos para o sujeito idiota. — Você me acertou na perna por nada. Estou chocado, isso, sim.
Eu sei. — Ele estava sorrindo, e isso me deu vontade de empurrá-lo para a banheira e estrangulá-lo, mas não ia adiantar.
Sarah estava batendo na porta. — Me deixa entrar!
Está bem!
Agora!
Está bem!
No caminho para a escola, encontramos alguns colegas de Rube. Simon. Jeff. Cheese.
Nós os convidamos para ir, lá em casa, à tarde, para um jogo que chamamos de Um Soco. Acontece que só temos um par de luvas de boxe na garagem; por isso, o jogo é uma luta de boxe na qual os dois lutadores só têm uma luva. Um Soco.
Jogamos na própria quarta-feira, e estávamos a fim. Muito a fim. A fim de bater. A fim de apanhar. A fim de fazer aquilo, mesmo que significasse não passar um tempo com o restante da família. Quer dizer, você ficaria surpreso em saber que dá para disfarçar um machucado ficando no canto mais escuro da sala.
Rube é canhoto, então, prefere ficar com a luva esquerda. Eu fico com a direita, que é a minha mão boa. São três rounds, e o vencedor é declarado. Algumas vezes, é fácil dizer quem vence. Outras, não.
Essa tarde, em particular, foi bem ruim para mim.
Pegamos as luvas no pátio e, primeiro, foi Rube contra mim. Rube e eu sempre fazíamos as melhores lutas. Sem regras. Tudo que eu precisava era dar um bom soco, e, a partir daí, Rube tentar acertar minha cabeça. Um bom soco de Rube me fazia ver estrelas e ficar sem ar. Eu só tentava ficar de pé sempre.
Então, “Din-don”, fez Cheese sem entusiasmo, e a luta começou.
Fizemos um círculo no pequeno pátio, que era metade concreto, metade grama. Era um cercado urbano, não muito maior que um ringue de boxe de verdade. Não tinha muito espaço para se desviar. E tinha o concreto duro também...
Vamos. — Rube deu um passo e foi direto na minha cabeça, mudou de direção e acertou a minha costela. Em seguida, deu um golpe de verdade na minha cabeça e errou por pouco a orelha. Foi então que vi ele baixar a guarda, aí mandei uma direita bem no nariz dele. Entrou. Incrível.
Uau!— Comemorou Simon, mas Rube continuou concentrado. Deu uns passos de novo, sem medo, e não se preocupou com meu balanço arrogante. Ele se inclinou e me atingiu no olho. Bloqueei o golpe e tentei acertá-lo. Ele se desviou, me girou e empurrou contra a parede, me puxando em seguida. Me empurrou de novo. Me botou de pé na grama e acertou o punho fechado no meu ombro. Sim. Ele acertou. Ah, estava tudo bem. Era como um machado abrindo as minhas juntas, e depois minha cabeça foi atingida pela mão esquerda dele. Ela se lançou para a frente e parou no meu queixo.
Com força. Aconteceu.
O céu desabou.
Fiquei sem ar.
O chão oscilou.
O chão.
O chão.
Balancei.
Errei.
Rube riu, sob a barba que estava nascendo.
Ele riu assim que caí de joelhos, e eu me levantei só um pouco para me agachar ali. A contagem começou, com prazer.
Rube: — Um... dois... três...
Quando voltei a me levantar, e os gritos de Simon, Jeff e Cheese deixaram de ser murmúrios, só mais uns socos e o primeiro round terminou.
Sentei no canto do pátio, na sombra.
Segundo round.
Mais ou menos a mesma coisa, mas, dessa vez, Rube também caiu.
O terceiro round foi briga de cachorro grande.
Nós dois começamos a dar golpes duros, e me lembro de resvalar na costela do Rube umas sete ou oito vezes e de receber, pelo menos, uns três bons socos na bochecha. Foi violento. O vizinho do lado esquerdo tinha papagaios na gaiola e um cachorro anão. As aves irritaram por cima da cerca, e o cachorro anão latia e pulava na cerca, enquanto meu irmão e eu lutávamos até cair desmaiados. O punho dele era um borrão grande e marrom que continuava a se projetar do braço comprido, me atingindo e cantando, enquanto colava minha pele aos ossos. Tudo parecia dobrado, instável, tremido, e adquiria uma cor laranja-escura, e eu podia sentir aquele gosto de metal escorrendo do nariz para o lábio, passando pelos dentes e ficando na língua. Ou será que eu estava sangrando na boca? Não sei. Não sabia de nada até me agachar de novo, ficar tonto e achar que ia vomitar.
Um... dois...
Dessa vez, a contagem não significava nada. Ignorei.
Dessa vez, só o que fiz foi me sentar apoiado na cerca de trás até me recuperar.
Tudo bem? — perguntou Rube pouco depois, com o cabelo espesso balançando sobre os olhos dele.
Fiz que sim com a cabeça.
Estava bem.
Ao voltar para casa, chequei os danos, e não parecia nada bom.
Não tinha sangue no meu nariz. Ele vinha da minha boca, e eu tinha um olho roxo. Dos bem escuros.
Não adiantava esconder. Não hoje. Não tinha sentido. Mamãe ia matar a gente.
Foi o que ela fez.
Deu uma olhada em mim e falou: — E o que foi que aconteceu com você? — Ah, nada.
Então viu Rube, que tinha o lábio meio inchado.
Ai, garotos. — Balançou a cabeça. — Vocês me dão nojo, sério. Não conseguem ficar uma semana sem machucar um ao outro.
Não. Não conseguíamos.
Estávamos sempre machucando um ao outro: no boxe ou jogando futebol na sala com um par de meias enrolado.
Melhor ficarem longe um do outro, por enquanto — ordenou, e obedecemos àquela ordem. Tentamos mesmo ouvir a nossa mãe, pois ela era durona e fazia faxina na casa de gente rica para viver, trabalhando muito para que tivéssemos uma boa casa. A gente não gostava muito quando ela se decepcionava com a gente.
A decepção ia continuar.
Ficou muito pior durante o dia seguinte porque alguns dos meus professores ficaram um pouco preocupados com o estado do meu rosto e com o modo como eu sempre parecia ter um novo hematoma, ferida ou arranhão nele. Me fizeram um monte de perguntas esquisitas sobre como iam as coisas em casa, como eu lidava com meus pais e todo tipo de coisa. Só disse a eles que me dava bem com todo mundo e que as coisas estavam do mesmo jeito em casa. Muito bem.
Tem certeza? — perguntaram.
Como se eu fosse mentir. Talvez devesse ter dito a eles que tinha batido na porta ou levado um tombo na escada do porão. Eles teriam rido um bocado. Na verdade, só disse a eles que eu lutava boxe como um passatempo, e que ainda não era muito bom.
Sem dúvida, não acreditaram no que eu disse porque, na tarde de quinta-feira, minha mãe recebeu um telefonema da escola, solicitando uma reunião com o diretor e a assistente social.
Ela foi na sexta-feira, na hora do almoço, e quis ter certeza de que Rube e eu também estávamos lá.
Do lado de fora, pouco antes de entrar no gabinete da assistente social, falou: — Esperem aqui e não se mexam até eu dizer que podem entrar.
Concordamos e nos sentamos, e uns dez minutos depois, ela abriu a porta e chamou: — Agora. Entrem.
Nós nos levantamos e entramos.
Dentro do gabinete, o diretor e a assistente social nos fitavam com um tipo de repugnância controlada e divertida. E mamãe também, e a razão daquele olhar ficou clara quando ela enfiou a mão dentro da bolsa e retirou nossas luvas de boxe, dizendo animada: — Muito bem, podem colocar.
Ai, caramba, mãe — protestou Rube.
Não, não, não — insistiu o sr. Dennison, o diretor. — Estamos muito interessados em ver isso.
Vamos, garotos — disse mamãe em tom irônico. — Não fiquem envergonhados...
Mas essa era a questão. Nos intimidar. Nos humilhar. Nos envergonhar. Dava para ver o que estava acontecendo, quando cada um de nós colocou a luva.
Meus filhos — falou minha mãe para o diretor e, então, para nós. — Meus filhos.
A expressão no rosto dela era de amarga decepção. Parecia que ia chorar. As rugas ao redor dos olhos dela eram leitos de rio secos e escuros, esperando. Nenhuma lágrima rolou. Ela só olhou. Para longe. Então, decidida, fixou os olhos em nós e parecia pronta a cuspir em nossos sapatos e nos renegar. Eu não a culpava.
Então, é isso que eles fazem — disse minha mãe para eles. — Lamento por tudo isso, por desperdiçar o tempo dos senhores assim.
Está tudo bem — falou Dennison, e ela apertou a mão dele e da mulher da assistência social.
Desculpem — falou mais uma vez e saiu, sem nem mesmo voltar a olhar para nós. Ela nos deixou parados ali, usando as luvas, feito dois animais ridículos no inverno.

Não me pergunte o porquê, mas estou na Rússia, sentado num ônibus, em Moscou.
Está lotado.
O ônibus se move lentamente.
Está congelando.
O cara perto de mim está sentado próximo à janela e segura um tipo de roedor que sibila para mim, mesmo que eu só esteja olhando para ele. O cara me dá uma cutucada, diz alguma coisa e ri. Quando pergunto se é Moscou mesmo (porque, claro, eu nunca estive lá), começa a conversar comigo por um longo tempo, o que é um milagre, pois não posso dizer nem uma palavra, já que não falo a língua dele.
Ele é inacreditável.
Falando.
Rindo, e, no fim, gosto de verdade do cara. Rio de todas as piadas dele pelas linhas que lhe jazem no rosto.
Ônibus lento — digo. Claro que ele não entende nada.
Rússia.
Dá para dizer que diabos estou fazendo na Rússia? O ônibus também está congelando. Já disse isso? Já? Olha, sério, está, e todas as janelas estão embaçadas.
Tremo.
Tremo no banco até não aguentar mais. De pé.
Tento me levantar, mas pareço colado ao banco. É como se tivesse ficado congelado a ele.
Levanta/ — digo para mim mesmo, mas não consigo. Não consigo! Então, vejo alguém em meio à multidão no corredor, mancando na minha direção.
Não.
Ai, não.
É uma velha, e, na Rússia, as velhas cobram os direitos delas de verdade. Pior ainda, ela está olhando direto para mim. Direto para mim.
Me ajuda a levantar — falo para o cara perto de mim. Imploro, mas ele não faz coisa alguma. Aí se vira para dormir, amassando o roedor contra a janela. O bicho engasga.
Ela ainda está vindo. Não.
Um pesadelo.
Faz uma careta e fixa os olhos em mim, me dizendo em silêncio para sair do banco.
Levanta! — grito para mim mesmo. Não consigo, e ela...
Chega.
Ela — começa, e a partir daí nada pode interrompê-la. Ela cospe xingamentos em russo bem na minha cara e ergue os punhos. As minúsculas mãos ferozes tentam me erguer, segurando minhas roupas, para me tirar do banco.
Sinto muito! — murmuro, mas a velha é a fúria em pessoa, me deixando mais agitado.
Mais tarde, estou sentado no corredor, e o fundo da calça ainda está colado no banco. Um homem de meia-idade fala comigo na minha língua: — Não devia ter ofendido aquela senhora, garotão.
Não brinca? — retruco, tentando manter apele nua longe do chão congelado.
A velha sorri com nojo para mim.

Markus Zusak, in O Azarão

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