quinta-feira, 27 de julho de 2023

Cartas para minha avó

Quando passei no mestrado, aos trinta e três anos, senti uma diferença em mim, como se tivesse passado de fase. As coisas que me incomodavam muito deixaram de incomodar, e passei a entender o que de fato era importante na minha vida.
Decidi que participaria de mais eventos acadêmicos e, em 2013, um trabalho meu foi aceito para ser apresentado em um seminário na Universidade Nacional de La Plata, na Argentina. Foi minha segunda experiência internacional. Senti que seria necessário dialogar mais com outras epistemologias do Sul, de conhecer mais profundamente o pensamento das intelectuais feministas da América do Sul, uma vez que em minha formação isso me foi negado.
Fui de avião até Buenos Aires e, de lá, peguei um ônibus até La Plata. Foi uma experiência muito ruim, pois sofri muito assédio de homens na rua. “Brasileira”, “mulata”, “bonita”, fui obrigada a escutar quando ainda estava em Buenos Aires. Ao chegar na cidade, foi infernal ter que lidar com pessoas na rua me parando para tocar nos meus cabelos, como se nunca tivessem visto uma pessoa negra, me senti num zoológico. Até me entender com o mapa e encontrar o hostel onde eu ficaria hospedada, vivi momentos horríveis, vó.
Quando finalmente cheguei no hostel, a recepcionista me abordou tocando nas minhas tranças. Estava tão irritada com o que havia passado na rua, que respondi: “Olha, precisa tomar um vinho antes pra achar que tem intimidade pra me tocar”. Ela ficou sem graça e até o dia da minha saída me tratou com formalidade. Já na universidade, entre as colegas que participavam do evento, a recepção foi acolhedora. Apesar de ter dificuldades de falar o espanhol, compreendo bem e pude assistir a algumas das apresentações sem grandes problemas. O que aprendi ali ampliou o meu olhar em relação ao debate feminista.
No dia da minha apresentação, dividi mesa com acadêmicas da Argentina, Bolívia, Venezuela. Meu trabalho foi bem recebido e gerou discussões interessantes. Não participei das festas pós-apresentações porque, infelizmente, não me sentia segura naquela cidade. Evitava andar nas ruas ou fazer qualquer coisa fora do hostel que não tivesse ligação com o evento. Como eu ainda teria alguns dias até o meu voo de volta, quando o seminário acabou, eu decidi pegar um ônibus e ir até Mar del Plata.
Sempre quis conhecer outros países e cidades e me pareceu uma ótima oportunidade para explorar. Lembro da minha alegria em pegar um daqueles ônibus de dois andares e de ir olhando a estrada enquanto seguíamos viagem. Foi uma sensação de liberdade inexplicável. Queria poder aproveitar, nem que por dois dias, o máximo daquela viagem e daquele tempo sozinha. Assim que cheguei, deixei a mala no hotel e fui andar pela cidade. Caminhei pelas praias até escurecer, sentindo a brisa do mar. No dia seguinte, saí cedo para andar sem rumo e sem pressa. Foram apenas dois dias naquela cidade, mas senti que ali colei minhas asas, do mesmo modo como minha mãe deve ter sentido quando Dara e eu compreendemos os motivos pelos quais ela fora tão bruta durante nossa infância. Precisei lidar com o assédio novamente quando retornei a Buenos Aires para pegar o voo de volta para o Brasil, mas nada me tirou aquele sentimento de liberdade.

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

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