Dizem
que há três etapas na vida para aqueles que vivem a existência em
círculos. São elas a rejeição, a exploração e a aceitação.
São
categorias bem superficiais, que englobam diversas outras camadas
ocultas por trás dessas palavras mais amplas. A rejeição, por
exemplo, pode ser subdividida em várias reações estereotipadas,
como: suicídio, desânimo, loucura, histeria, isolamento e
autodestruição. Como quase todos os kalachakra, eu vivi quase tudo
isso em alguma etapa das minhas primeiras vidas, e a lembrança
permanece em mim como um vírus enroscado na parede do meu estômago.
No
meu caso, a transição para a aceitação foi tão difícil quanto
se esperaria.
Minha
primeira vida foi medíocre. Como qualquer jovem da época, fui
convocado para combater na Segunda Guerra Mundial, na qual servi como
um soldado da infantaria completamente medíocre. E, se a minha
contribuição em tempo de guerra foi escassa, minha vida após o
conflito pouco acrescentou a um senso de significado. Voltei para a
Mansão Hulne após a guerra e assumi o posto que fora de Patrick,
cuidando dos terrenos em volta da propriedade. Assim como meu pai
adotivo, eu havia sido criado para amar a terra, o cheiro que ela
exala após a chuva e o chiado repentino que toma conta do ambiente
quando as sementes de tojo se espalhavam de uma só vez, e, se de
alguma forma eu me sentia isolado do resto da sociedade, a sensação
era apenas como a falta que um filho único sente de um irmão, um
conceito de solidão sem a experiência para torná-la real.
Quando
Patrick morreu, minha posição foi formalizada, embora àquela
altura o esbanjamento e a apatia já tivessem acabado com
praticamente toda a riqueza dos Hulne. Em 1964, o Departamento
Britânico de Conservação comprou a propriedade. Com isso, passei
meus últimos anos conduzindo excursionistas pelos pântanos
descuidados e observando as paredes da mansão afundarem lenta e
profundamente no lodo negro e úmido.
Morri
em 1989, no dia da queda do Muro de Berlim, sozinho num hospital em
Newcastle. Um pensionista divorciado e sem filhos que, até no leito
de morte, acreditava ser filho de Patrick e Harriet August, falecidos
há muito tempo, e que acabou morrendo da doença que tem sido o
suplício recorrente das minhas vidas — mielomas múltiplos que se
espalham pelo meu corpo até ele simplesmente parar de funcionar.
Como
seria de se esperar, minha reação ao renascer exatamente onde havia
começado — no banheiro feminino da estação de trem de
Berwick-upon-Tweed, no dia de Ano-novo de 1919, com todas as memórias
da minha vida anterior —, me deixou num estado de loucura bem
típico. Quando minha consciência adulta voltou para o meu corpo de
criança a plenos poderes, primeiro fiquei confuso, depois senti
angústia, dúvida, desespero, então se seguiram os gritos, os
berros a plenos pulmões, até que, por fim, já com sete anos, fui
internado no Hospício St. Margot para os Desafortunados, lugar ao
qual eu realmente acreditava pertencer, e no sexto mês de
confinamento consegui me jogar de uma janela do terceiro andar.
Olhando
em retrospecto, compreendo que normalmente três andares não bastam
para garantir a morte rápida e relativamente indolor que as
circunstâncias justificavam, e eu poderia muito bem ter quebrado
todos os ossos da parte inferior do corpo e, ainda assim, manter a
consciência intacta. Por sorte, caí de cabeça, e isso foi
suficiente.
Claire North, in As primeiras quinze vidas de Harry August
Nenhum comentário:
Postar um comentário