domingo, 21 de agosto de 2022

Capítulo 3 | As primeiras quinze vidas de Harry August

Dizem que há três etapas na vida para aqueles que vivem a existência em círculos. São elas a rejeição, a exploração e a aceitação.
São categorias bem superficiais, que englobam diversas outras camadas ocultas por trás dessas palavras mais amplas. A rejeição, por exemplo, pode ser subdividida em várias reações estereotipadas, como: suicídio, desânimo, loucura, histeria, isolamento e autodestruição. Como quase todos os kalachakra, eu vivi quase tudo isso em alguma etapa das minhas primeiras vidas, e a lembrança permanece em mim como um vírus enroscado na parede do meu estômago.
No meu caso, a transição para a aceitação foi tão difícil quanto se esperaria.
Minha primeira vida foi medíocre. Como qualquer jovem da época, fui convocado para combater na Segunda Guerra Mundial, na qual servi como um soldado da infantaria completamente medíocre. E, se a minha contribuição em tempo de guerra foi escassa, minha vida após o conflito pouco acrescentou a um senso de significado. Voltei para a Mansão Hulne após a guerra e assumi o posto que fora de Patrick, cuidando dos terrenos em volta da propriedade. Assim como meu pai adotivo, eu havia sido criado para amar a terra, o cheiro que ela exala após a chuva e o chiado repentino que toma conta do ambiente quando as sementes de tojo se espalhavam de uma só vez, e, se de alguma forma eu me sentia isolado do resto da sociedade, a sensação era apenas como a falta que um filho único sente de um irmão, um conceito de solidão sem a experiência para torná-la real.
Quando Patrick morreu, minha posição foi formalizada, embora àquela altura o esbanjamento e a apatia já tivessem acabado com praticamente toda a riqueza dos Hulne. Em 1964, o Departamento Britânico de Conservação comprou a propriedade. Com isso, passei meus últimos anos conduzindo excursionistas pelos pântanos descuidados e observando as paredes da mansão afundarem lenta e profundamente no lodo negro e úmido.
Morri em 1989, no dia da queda do Muro de Berlim, sozinho num hospital em Newcastle. Um pensionista divorciado e sem filhos que, até no leito de morte, acreditava ser filho de Patrick e Harriet August, falecidos há muito tempo, e que acabou morrendo da doença que tem sido o suplício recorrente das minhas vidas — mielomas múltiplos que se espalham pelo meu corpo até ele simplesmente parar de funcionar.
Como seria de se esperar, minha reação ao renascer exatamente onde havia começado — no banheiro feminino da estação de trem de Berwick-upon-Tweed, no dia de Ano-novo de 1919, com todas as memórias da minha vida anterior —, me deixou num estado de loucura bem típico. Quando minha consciência adulta voltou para o meu corpo de criança a plenos poderes, primeiro fiquei confuso, depois senti angústia, dúvida, desespero, então se seguiram os gritos, os berros a plenos pulmões, até que, por fim, já com sete anos, fui internado no Hospício St. Margot para os Desafortunados, lugar ao qual eu realmente acreditava pertencer, e no sexto mês de confinamento consegui me jogar de uma janela do terceiro andar.
Olhando em retrospecto, compreendo que normalmente três andares não bastam para garantir a morte rápida e relativamente indolor que as circunstâncias justificavam, e eu poderia muito bem ter quebrado todos os ossos da parte inferior do corpo e, ainda assim, manter a consciência intacta. Por sorte, caí de cabeça, e isso foi suficiente.

Claire North, in As primeiras quinze vidas de Harry August

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