terça-feira, 26 de julho de 2022

Velhas cartas

Você nunca saberá o bem que sua carta me fez...” Sinto um choque ao ler esta carta antiga que encontro em um maço de outras.
Vejo a data, e então me lembro onde estava quando a recebi. Não me lembro é do que escrevi que fez tanto bem a uma pessoa. Passo os olhos por essas linhas antigas, elas dão notícias de amigos, contam uma ou outra coisa do Rio, e tenho curiosidade de ver como ela se despedia de mim. É do jeito mais simples: “A saudade de...”
Agora folheio outras cartas de amigos e amigas; são quase todas de apenas dois ou três anos atrás. Mas, como isso está longe! Sinto-me um pouco humilhado pensando como certas pessoas me eram necessárias e agora nem existiriam mais na minha lembrança se eu não encontrasse essas linhas rabiscadas em Londres ou na Suíça. “Cheguei neste instante; é a primeira coisa que faço, como prometi, escrever para você, mesmo porque durante a viagem pensei demais em você...”
Isto soa absurdo a dois anos e meio de distância. Não faço a menor ideia do paradeiro dessa mulher de letra redonda; ela, com certeza, mal se lembrará do meu nome. E esse casal, santo Deus, como era amigo: fazíamos planos de viajar juntos pela Itália; os dias que tínhamos passado juntos eram “inesquecíveis”.
E esse amigo como era amigo! Entretanto, nenhum de nós dois se lembrou mais de procurar o outro.
Essa que se acusa e se desculpa de me haver maltratado — “mais pourquoi alors ai-je été si méchante... j'ai dû te blesser, pardon... oh, j'étais vraiment stupide et tu dois l'oublier... je veux te revoir...”, mas eu não me lembro de mágoa nenhuma, seu nome é apenas para mim uma doçura distante.
E que terríveis negócios planejava esse meu amigo de sempre!
Sem dúvida iríamos ficar ricos, o negócio era fácil e não podia falhar, ele me escrevia contente de eu ter topado com entusiasmo a ideia, achava a sugestão que eu fizera “batatal”, dizia que era preciso “agir imediatamente”. É extraordinário que nunca mais tenhamos falado de um negócio tão maravilhoso.
Aqui, outro amigo escreve do Rio para Paris me pedindo um artigo urgente e grande “sobre a situação atual da literatura francesa, pelo menos dez páginas, nossa revista vai sair dia 15, faça isso com urgência, estamos com quase toda a matéria pronta”. Não fiz o artigo, a revista não saiu, a literatura francesa não perdeu nada com isso, a brasileira, muito menos.
As cartas mais queridas, as que eram boas ou ruins demais, eu as rasguei há muito. Não guardo um documento sequer das pessoas que mais me afligiram e mais me fizeram feliz. Ficaram apenas, dessa época, essas cartas que na ocasião tive pena de rasgar e depois não me lembrei de deitar fora. A maioria eu guardei para responder depois, e nunca o fiz. Mas também escrevi muitas cartas e nem todas tiveram resposta.
Imagino que em algum lugar do mundo há alguém que neste momento remexe, por acaso, uma gaveta qualquer, encontra uma velha carta minha, passa os olhos por curiosidade no que escrevi, hesita um instante em rasgar, e depois a devolve à gaveta com um gesto de displicência, pensando, talvez: “é mesmo, esse sujeito onde andará? Eu nem me lembrava mais dele...”
E agradeço a esse alguém por não ter rasgado a minha carta: cada um de nós morre um pouco quando alguém, na distância e no tempo, rasga alguma carta nossa, e não tem esse gesto de deixá-la em algum canto, essa carta que perdeu todo o sentido, mas que foi um instante de ternura, de tristeza, de desejo, de amizade, de vida — essa carta que não diz mais nada e apenas tem força ainda para dar uma pequena e absurda pena de rasgá-la.

Rubem Braga, in A traição das elegantes

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