quarta-feira, 2 de março de 2022

Capítulo nove | O negro



Quando chegaram ao terreiro, os guerreiros carregando o negro demasiado assustado, a comunidade cercou. Descobriram os olhos do animal e todos se assombraram, os que soam e o animal. Estava suando e respirava com dor, a boca enorme de muitos dentes, o tamanho em dobro dos dentes para morderem até o osso. E todos se interrogaram se não seria inimigo de perigo bastante, melhor que fosse matado ou deitado ao quarto mar. E entoavam que era feroz, olhava com ferocidade, tinha mãos largas, dobraria um curumim de seu tempo como se fosse um galho seco, certamente alimentado por mordeduras furtivas, traiçoeiras, nas mãos e nos pescoços dos que soam. Deve comer sem fogo, bichos ainda vivos que tenham o azar de abeirar sua mão, sua boca. Insistiam:
vejam os dentes, a força dos dentes, o amplo da boca, tão grande toca para um animal de tão pouco espírito.
E o negro se enchia de ar, lutando contra seus próprios pulmões acelerados, intensos. Estava amarrado e não poderia mal algum. Mas era o contrário do que prometiam as sapiências da comunidade. Não aparentava mansidão. Estava robustecido e desorientado na pressa e no medo, teria certamente suas ganas de ferir. Sobrevivia. Não se deitava a morrer, não era alegre com morrer, era propenso à vida. E os guerreiros lhe puseram as lâminas junto ao pescoço e o encararam com suas mais tenebrosas expressões de guerra. E os guerreiros sentiram muita necessidade de matar e as femininas suplicavam que assim fosse. Mais gritavam as femininas em alvoroço e os curumins e as curatãs afugentaram para estremecerem longe seu pavor. Mediram-lhe os braços, as pernas, como teria ossos largos, a cabeça pesada sobre os ombros, o olhar cintilante, com urgência. Então, Pai Todo chefiou:
façam-no beber porque lhe acontece sede. Façam-no deitar porque lhe acontecem dores no corpo e sono. Soprem-lhe as folhas, afastem os insectos. Exalem fumos. Este pouco de animal é ao nosso cuidado. Será vivo. Sua vida é por nossa dignidade.
E a comunidade inteira se atarefou obediente mas assustadiça. Os negros que por ali haviam passado eram mandados para muito embora. Não havia costume de os tratar como da dignidade dos que soam. Havia uma perplexidade insanável entre todos. Ainda assim, chefiados, cumpriam com a gentileza com que a Verdadeiríssima Divindade havia entoado abaeté para que os abaeté fossem existidos.
Foram atar o curumim negro no exterior da aldeia. Cobertos seus olhos, novamente o passaram para lá da entrada secreta da cerca e o foram meter a caminho do areal. Ponderavam um cárcere que o deixasse a salvo dos piores predadores, mas distante um bocado da aldeia, para nem escutar nem cheirar. Atado e sem fuga possível, o negro já mais descansado foi descoberto dos olhos e ficou ao luar sem outro ruído ou expressão. Era deitado à espera. Esperou.
Os guerreiros acorreram à comunidade novamente e fizeram notícia de cuidado e brio. Pai Todo chefiou que por três noites assim ficasse o negro atado. Haveria de provar sua paciência para a paz e merecer ser libertado. Aparentado da escuridão, entenderam depois os abaeté, um jacaré mínimo viu oportunidade de adentrar a boca ressonante do negro e viveu no seu peito. Bem notaram que o sono lhe troava muito mais alto, e que em seu interior se fazia escutar um crepitar e até um movimento se via nas substâncias mais moles da barriga e acima da barriga, por vezes muito junto da garganta. Imediato, o bafo do negro mudou para insuportável e todos o lamentaram por se tornar pior. Era mais torto também. E comunicavam ao pajé para que ele repensasse a sorte do animal e até verificasse como não prometia mansidão, por ser curumim muito robusto que haveria de maturar para uma força ameaçadora. Mas o santo chefiava que o cuidado se mantivesse e que o negro estava a cargo da alegria abaeté sem hesitar. E todos o iam ver aos fundos onde o haviam amarrado e pasmavam a pegar-lhe nos membros e a espreitarem também boca toda, a suspeitar do jacaré que lhe fora viver dentro. Era, até ali, sem palavra. O negro, atónito e sempre esperador, seguia sem tentar expressão alguma. Certamente por ser ignorante, sem sapiência, sem conteúdo demasiado, muito ao jeito de outras feras de aspecto mais inesperado. O negro era quieto como uma onça quieta que não tivesse importância em ser amarrada e observada de perto com empurrões e algumas batidas. Batiam-lhe para que se virasse um pouco, para que subisse o braço, o outro braço, a perna, abrisse as pernas, mostrasse os baixios extremamente externos, grandes demasiado. Comentavam que a sua espécie era de dimensões fartas. O tapir também crescia assim. E comentavam que o animal escuro era quieto mas insolente, demorava sempre um pouco a cumprir o movimento a que o obrigavam. E cumpria bufando, estaria perto de uma mordedura, de uma tentativa de ataque. Que bom era estar tão amarrado e indefeso. Que boa era a guerra dos abaeté, implacável, certeira, obstinada, sagrada.
comunidade toda se punha a caminho para espreitar de perto a fera tão parecida com alguém. Até as femininas que, entre o asco e o fascínio, comparavam o negro ao boto e à onça, à cobra e à ave escura. Falavam de tudo quanto fosse também desiluminado e estabeleciam pertenças como se a Verdadeiríssima Divindade houvesse decidido que as vidas negras eram semelhantes obrigatoriamente. E, entre o asco e o fascínio, muitas femininas assumiam gostar de como se compunha o corpo do animal, tão protuberante, tão largo. As patas, entoavam algumas femininas entusiasmadas, são pequenas rochas divididas por dedos. E riam. Quando alguém perguntava se haveriam de lhe mexer, mexer no corpo nocturno da fera, todas negavam. Longe iam os tempos em que se negociava com os predadores. Essas necessidades de paz eram antigas e a maturação da mata havia sanado a condenação das femininas aos inimigos. Claro que nenhuma se deitaria com o negro, nenhuma lhe mexeria o corpo, seria grotesco. Um filho entre uma feminina e o negro seria também silêncio, uma carne incapaz de entoar, uma refeição para a fome de algum jacaré que o houvesse de caçar. Depois, tocavam-lhe com paus para atiçar o jacaré e riam. Pelo mole da barriga, e acima da barriga, o jacaré se enfurecia e movia passando a cauda de lado para outro e isso era perfeitamente visível. O negro chegava a contorcer-se em dores, tão cheio de uma outra fera, tão estreito para o seu crescimento gigante. E as femininas aterrorizavam-se. Que horror, viver com um jacaré no peito, ser por ele habitado, tão fundo na toca do espírito. Poderia o jacaré morder o espírito se o negro tivesse um. Melhor seria não juntarem suas peles porque os dentes rasgariam tudo e o pajé haveria de se enfurecer por não se ter mantido o inimigo vivo. Umas femininas iam e outras vinham. Traziam os transparentes para se divertirem com aquela estranheza e com aquele medo. Mostravam o negro aos curumins e às curatãs mais pequenas e gostavam de reparar como, mesmo amarrado, fazia medo. Um medo seguro, sem perigo. E como fedia da boca. Fedia demasiado da boca.
Numa tarde, também Altura Verde escolheu o filho para observar o negro e espiar por simples curiosidade. Entoou:
Honra, abeira o animal negro, pensa no seu significado.
E Honra abeirou ascoroso, seu rosto mais guerreiro montado, furioso, ofendido, com vontade de diminuir o inimigo numa dentada só. Mas o tamanho da fera era maior e os olhos redondos gigantes e estranhos fixavam o abaeté fazendo sua leitura também incómoda. E o feio perguntava:
que estás a ver, bicho horrendo, o que vês.
Mas o negro calava sem descodificar a língua do povo dos três mares. Então, Altura Verde quis saber:
Honra, que significa o negro. O que pode significar esse negro para a nossa mata.
E o guerreiro branco respondeu:
não sinto.
O animal, por seu lado, parecia estranhar Honra mais do que aos outros. Estranhava certamente sua pele diferente, como poderia ser um caçado igual ao que se tornara também.
Outros assomaram e empunharam seus rostos de guerra para atormentar o amarrado. Empunharam os rostos muito junto, até suportando o bafo do negro, e o negro resistia. Se houvesse de ser um curumim frágil teria sido desfeito num pranto medroso, cagado de estar caçado, desenganado para morrer. Mas a presa observava também os rostos ferozes com profundidade e talvez ponderasse na réstia de sua inteligência animal o que lhe entoavam. Quando os guerreiros discutiram a imprudência de acolher tal fera, voltando a examinar-lhe os membros, os dentes, os baixios e os piolhos, quiseram muito acabá-lo ali mesmo. Era o melhor. Era mesmo o melhor. Acabá-lo ali como competia à sensatez de proteger a comunidade, tantas femininas e transparentes dependentes de suas valentias. Assim se puseram em brados e moveram nervosamente numa dança para pensarem e gratificarem o sangue por sua fervura. Apontavam as lâminas ao pescoço do negro e o negro inquietou um pouco até inquietar mais porque se levantavam as vozes e o tumulto em seu redor descontrolava bastante. Então, algum guerreiro vociferou:
eu quero, eu quero, a mata quer, a mata é boa, a fera morta é alegria da mata, minha arma é boa, a arma que mata. Eu vou matar.
Poderia ser que apenas aliviasse sua vontade para a perder, mas o negro temeu e entoou, na suja língua branca, um pedido:
Deus me ajude.
E seu bafo fedeu muito entre todos. E todos escutaram e sentiram aquele nojo e Honra entendeu. Honra entoou:
é a língua branca. A língua e o fedor da língua branca, a palavra que apodrece na boca e apodrece a boca.
Os guerreiros espantaram.
E que significou.
Perguntaram. O guerreiro branco respondeu:
suplicou por sua divindade. Evocou sua divindade na mata abaeté.
Altura Verde entoou:
então, a Verdadeiríssima Divindade devorou. Sua esperança é a ingenuidade. Está à mercê. Pobre animal capaz de vocabulário.
E Honra pediu:
posso falar branco com ele.
Altura Verde, apavorado, respondeu:
não. Fecha em tua boca esse perigo. Não te tentes nessas palavras pela pouca importância de um animal tão amarrado e sem uso. Silencia tua boca. Essa língua ainda não é uma arma que saibas usar sem sucumbir também.
Naquele instante, o negro encarou Honra e perguntou:
entendes o que digo, rapaz branco. Entendes o que digo.
O guerreiro branco, confuso, subitamente humilhado por não ser indistinto entre todos os guerreiros da comunidade, escondeu o que escutara e afastou-se. O pai lhe perguntou:
que significou.
E ele, uma e outra vez jurou:
nada.
Honra fugiu dali. Decidiu que o negro lhe perigava tudo. Precisava de morrer. Haveria de tornar para o matar. Era um absurdo que demorassem aquela fera nos cuidados dos abaeté. Era um absurdo pretenderem fazer de uma fera sem educação uma companhia para o mais gentil povo.
Quando anoitecesse, haveria de voltar e passar-lhe uma lâmina no pescoço. Na noite, o negro haveria de morrer como um bocado de ideia que não diferia da cegueira. Pertença da escuridão, quando alguém descobrisse, pensariam todos que a noite o cortara sem reparar. O negro à noite ficava sujeito a tudo quanto não prestava atenção. O mínimo acaso seria bastante para o terminar. Desiluminado da pele, no tempo desiluminado do dia, ninguém julgaria estranho que o animal sucumbisse sem maior razão do que sua própria condição. O guerreiro branco assim pensou e se convenceu. Ia ser muito mais astuto do que os outros. Mais cauteloso do que o santo. Seria surpreendente até para a intuição que os ancestrais inspiravam. O negro era um animal domesticado pelo branco. Traria seus vícios e suas chefias. As presas mansas afeiçoam ao predador, e fazem pelo predador a tocaia, nem que tombem na morte, nem que só a morte seja sua vitória e libertação. Era fundamental impedir aquele perigo. Era absolutamente fundamental.

Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil

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