sábado, 26 de fevereiro de 2022

O universo de um navio de guerra numa casquinha de noz

Foi preciso encontrar alguém que ocupasse o lugar do tanoeiro; desse modo, comunicou-se àqueles que se mostravam aptos ao ofício que se reunissem à volta do mastro principal para que um deles pudesse ser escolhido. Treze homens atenderam ao chamado — circunstância ilustrativa do fato de que muitos bons artesãos abandonam seus ofícios e o mundo para servir num navio de guerra. De fato, da tripulação de uma fragata podem-se destacar homens de todos os ofícios e vocações, de um pároco pecador a um ator arruinado. A Marinha é asilo para o pervertido, lar para o desafortunado. Aqui, os filhos da adversidade encontram a prole da calamidade, e aqui a prole da calamidade encontra o rebento do pecado. Reúnem-se aqui corretores falidos, engraxates, fura-greves e ferreiros; enquanto funileiros, relojoeiros, copistas, sapateiros, doutores, agricultores e advogados, todos perdidos de suas próprias vidas, comparam experiências e conversam sobre os velhos tempos. Náufragos de uma praia deserta, os homens da tripulação de um navio de guerra poderiam rapidamente erguer e fundar uma Alexandria por si próprios e provê-la de tudo quanto concorra à invenção de uma capital.
Com muita frequência, veem-se na coberta dos canhões todos os ofícios em ação ao mesmo tempo — tanoagem, carpintaria, alfaiataria, funilaria, ferragem, cordoaria, pregação, jogatina e quiromancia.
A bem da verdade, um navio de guerra é uma cidade flutuante, com longas avenidas onde se veem canhões no lugar das árvores e inúmeras vias umbrosas, gramados e trilhas desusadas. O convés principal é uma grande praça, parque ou campo de marte, com um enorme olmo, como o de Pittsfield, sob a forma do mastro principal, numa ponta, e o palácio da cabine do comodoro, na outra.
Ou ainda, um navio de guerra é uma cidade elevada, cercada de muralhas e ocupada por exércitos, como Quebec, onde os passeios públicos são em sua maioria trincheiras, e os pacíficos cidadãos cruzam sentinelas armadas a cada esquina.
Ou ainda é como um prédio de apartamentos em Paris, porém de cabeça para baixo — sendo o primeiro andar, ou convés, alugado por um lorde; o segundo, por um seleto grupo de cavalheiros; o terceiro, por multidões de artesãos; e o quarto, por uma turba de gente comum.
Pois é exatamente assim uma fragata, onde o comandante tem uma cabine inteira e o espardeque para si, os lugares-tenentes têm a praça-d’armas logo abaixo, e a massa de marinheiros balança em suas macas abaixo de todos.
E com suas longas fileiras de portinholas, cada qual revelando o focinho de um canhão, um navio de guerra lembra uma casa de três andares nalguma parte mal-afamada da cidade, com um porão de profundidade indefinida e sujeitos mal-encarados à espreita nas janelas.

Herman Melville, in Jaqueta Branca

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