quarta-feira, 28 de julho de 2021

O convidado agradece

Há dias, em certo jantar naquela cobertura da Zona Sul, um convidado pediu a palavra, e tal foi a surpresa que ninguém se mexeu para recusá-la. É de lembrar que há muito na Zona Sul desapareceu o hábito de usar da palavra à maneira clássica: um falando e os demais reduzidos ao silêncio, ouvindo. Há talvez meio século que se instituiu a conversa generalizada, isto é, todos falando ao mesmo tempo, com a voz ou com o garfo, pois comer é também maneira eficiente de comunicar-se: o apetite chama o apetite, e os apetites porfiam no diálogo manducativo. Esta segunda técnica de comunicação é, mesmo, a preferida.
Não se lhe tendo recusado a palavra, ela também não lhe foi concedida, pois o espanto dominava as fisionomias e os talheres. À falta de sim ou não, peremptório, o homem tomou a palavra resolutamente, e disse que ia agradecer. Agradecer o quê? perguntou a si mesmo. E a si mesmo respondeu, como o saudoso ministro Ataulfo de Paiva: tudo. E prosseguiu:
Tudo é para agradecer, a começar pelo fato de estarmos aqui reunidos, degustando o excelentíssimo arroz com castanha-de-caju, digno da mesa dos deuses, como outro igual ainda não comi, e creio que todos os presentes jurarão o mesmo. Gozar da amizade de Baby e Lulu Fontamaro é uma felicidade para o coração e para o paladar.
Mas, se estamos aqui reunidos, papando o bom arroz do casal, obviamente é porque emplacamos mais este setenta e um, e se emplacamos, é forçoso agradecer o emplacamento. Já imaginaram se todos nós houvéssemos tomado a barca de Caronte antes desta noite amena sob as estrelas, pois até estrelas Lulu e Baby providenciaram neste dezembro de chuva? Que desolação reinaria nesta casa, que abandono, que gélidas imagens de finitude — mas nem quero insistir, rendo graças à vida e à sua conservação, à maravilhosa circunstância de termos vencido todos os elementos que conspiravam contra a nossa permanência em nossos respectivos domicílios, gabinetes, escritórios, empregos e mesmo desempregos, pois há quem viva disto, e viva bem.
Agradecer à vida é agradecer inclusive os seus males, porque nos pouparam ou só de leve nos atingiram com sua farpa. Nossas gripes não se entenebreceram em pneumonias duplas; nossos embaraços gástricos e/ou financeiros não nos derrubaram. Passo os olhos em torno desta mesa florida (que soberbo arranjo de flores você conseguiu com sua criatividade, Baby!) e não vejo nenhum aleijado. Se alguém aqui usa perna mecânica, eu o felicito, pois absolutamente não se percebe, e noto nos convivas uma aérea leveza de Nureyev. Graças! graças sejam dadas à vida, em sua plenitude às vezes contraditória, mas, no fundo, dialética, perfazendo a síntese expressa nesta gratíssima reunião!
Agradeço ao charuto do nosso amigo Nivaldo, que, ao acendê-lo antes de terminado o jantar, e soprando baforadas junto às faces pulcras de Jeanete Taborda, nem por isto eleva o índice de poluição ambiente na Guanabara, pois como este índice já chegou ao máximo, pretensão inútil seria tentar aumentá-lo. Eis uma demonstração objetiva que devemos ao Nivaldo (obrigado, companheiro), ao mesmo tempo em que cabe agradecimento especial ao referido índice de poluição, de vez que ele comprovou a fortaleza de nossos organismos, resistentes a tudo. Enfrentaremos sorridentes os futuros flagelos sociais que se desencadearem sobre nossas cabeças, uma vez que o homem provou ser sempre superior a qualquer flagelo na história, sem embargo das baixas sofridas na sempiterna peleja.
Agradeço à língua portuguesa por me haver obsequiado com esta palavra sempiterna, que suponho pronunciada pela primeira vez na Zona Sul, onde se diz que tudo é passageiro, as situações não duram mais que uma estação de praia ou um drink no Country, e amanhã já é ontem. Agradeço às guerras não declaradas, ou declaradíssimas, no Vietnã, no Camboja, no Oriente Médio, no Paquistão Oriental, por absurdo que pareça meu ponto de vista: elas estimulam o estudo da geografia através de notações concretas, dão matéria a correspondentes, fotógrafos e comentaristas internacionais, e assegurando a continuidade dos debates acadêmicos na ONU, garantem trabalho infindável às delegações. Eu quisera estar lá (na ONU, não na guerra) em pessoa, mas, como nem sempre as aspirações elevadas são factíveis, dar-me-ei por satisfeito (e agradecerei) se o governo se lembrar de meu filho Joanito para assessor de qualquer coisa naquela Assembleia. Ele é habilitado.
Em suma, agradeço. De coração. A tudo. Seria impossível minudenciar as gratidões, pois chegamos à sobremesa, e quero agradecer desde logo esta espetacular musse de manga gelada, nunca outra igual saboreamos antes, ou não é de manga? ah, é de pêssego, pois eu afirmo do mesmo modo que…
Aí faltou luz, e o homem acrescentou:
Agradeço à Light: ela não falha nunca nestas horas.

Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica

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