sábado, 12 de junho de 2021

Torto Arado / 5

Deixei a casa de meus pais montada num cavalo e na companhia de Tobias, levando uma trouxa pequena de roupas, lembrando a mala de couro surrada de Donana que Bibiana havia retirado de debaixo da cama antes de partir. Se ela não tivesse levado, talvez fosse eu a carregá-la comigo. Senti um aperto no peito; o trotar das patas invadia a parte baixa de meu quadril como um eco. Seguimos devagar, Tobias em silêncio, quando preferia que falasse algo para confortar minha aflição. Com uma mão eu segurava sua cintura, e com a outra, a trouxa.
Aqui é sua casa, sinhá moça.” Olhei ao redor e havia uma sombra extensa vinda da copa que transbordava de um jatobá a uns vinte metros da casa. Um verde vivo que chamava a atenção. Ele apeou, guiando o cavalo para um cocho com capim verde e fresco, deveria ter colhido ainda naquela manhã, antes de ir me buscar. Eu me sentia paralisada e já com vontade de voltar para casa de meus pais. “Entre.” Fiquei em choque com a desordem que havia naquele casebre de três cômodos, com roupas sujas, mau cheiro e toda espécie de entulho espalhado pelos cantos. Sem contar no estado geral da casa, com paredes esburacadas e filetes de luz entrando pelo telhado, o que indicava que precisava de reparos ou de uma nova cobertura. Em poucos dias sentiria um enorme arrependimento de ter escrito “quero” no papel pardo que dei a minha mãe, porque percebi que minha vida dali em diante não seria nada fácil.
Ele abriu a porta de um armário velho que terminou por ficar em sua mão e que acrescentou aos restos de coisas sem nome que estavam espalhadas pela casa. Disse que poderia guardar o que era meu naquele vão. Naquele momento, fui sendo tomada de pavor, mas fiz de tudo para não transparecer minha tristeza. Apesar de assustada e em dúvida, não queria magoar. Era natural aquela repulsa, afinal nunca havia saído de casa. Ali, na tapera de Tobias, tudo era novidade. Em breve se tornaria um lugar que poderia me trazer gosto. Nada que uma mulher não possa dar jeito, assim haviam me ensinado, tanto em casa quanto nas aulas da professora, na casa de dona Firmina.
Tobias parecia estar contente. Tomou a trouxa de minha mão e jogou na cama. Me pegou pelo braço e andou agitado pelos cômodos da casa me mostrando objetos, um monte de cacarecos, coisas estragadas e que jamais seriam recuperadas. Me conduziu alvoroçado pela porta do fundo, havia um pequeno jirau, achas de madeira, um fogão de barro quase desmoronando. Estava macambúzia, mas tentava prestar atenção aos cantos de terra que me mostrava. Guardei na memória as formas de um pé de araçá com frutos maduros no chão, bicados por pássaros. Quando ele chegou mais perto, disse que os pássaros não deixavam um fruto maduro no pé e, como ele não fazia questão, ficava por isso mesmo. Havia também um porco novo amarrado num tronco de árvore, e uma pequena plantação de palma.
Me levou de volta ao fogão velho e mostrou suas duas panelas negras das cinzas da lenha queimada. Repetia tudo como se estivesse ensinando uma criança vinda da cidade e que não sabia sobre nada daquilo. Na cozinha, embrulhos engordurados estavam dispostos em cima de um balcão carcomido, grãos de feijão e arroz como que semeados entre os pacotes desfeitos, além de restos de alimentos e uma nuvem carregada de moscas. Disse que eu poderia fazer o almoço, que se faltasse algo ali poderia encontrar crescendo no meio da terra. Agradeci a Deus por estar muda porque não saberia o que falar diante daquela pocilga.
Cumprida a apresentação, Tobias voltou para fora de casa, colocou seu chapéu de couro e desamarrou o cavalo, dizendo que iria retornar para a roça. Voltaria para almoçar. Cavalgou para longe. Me vi sozinha. Não sabia a que distância estava a vizinha mais próxima, nem o que fazer se encontrasse algum perigo, como uma caninana ou uma cascavel dentro de casa. Num primeiro instante, caí dura numa cadeira com o assento de palha desfeito, e o zumbido das moscas durante um tempo foi a única coisa que consegui escutar.
Pensei que ficar sozinha ali também não era tão ruim, porque não saberia o que fazer se Tobias quisesse me levar para a cama àquela hora da manhã. Retardaria meu medo até a noite, cada hora a sua agonia. Precisava colocar um pouco de ordem naquele chiqueiro que passaria a ser minha casa, caso aguentasse. Fui para a cozinha, porque decidi que deveria começar por ali. Procurei os grãos por cima da mesa, comecei a separar. Descobri que a nuvem de moscas cobria dois cumbás que deveriam ter sido pescados naquela manhã, antes do nascer do sol. Cobri os peixes antes que os insetos os devorassem. Separei o feijão de pequenas pedrinhas e restos de casca e coloquei de molho. Mas não havia água, nem vasilhame de reserva, então a primeira coisa a fazer era descobrir onde estava o rio. Retirei uma lata recendendo a ferrugem e levei para o fundo do quintal. Atravessei a mata, desci o terreno enladeirado para alcançar o vale do Santo Antônio. O rio estava cheio por aqueles tempos, logo o encontraria. Segui buscando em minha memória o padrão das casas dos moradores, quase todas construídas ao longo da margem dos rios, para que tivessem água ao alcance das mãos e da boca de forma rápida. Cheguei à margem do rio negro, com suas águas correndo sem obstáculos, carregando peixes e restos da mata para outro rio. Coloquei a lata na beira e quando ficou cheia tive dificuldades para carregar de novo até a casa. Mas já estava acostumada – dizia a mim mesma – e logo meus pés conhecerão este pedaço de terra sem que meus olhos precisem ver o chão.
Coloquei a lata aos pés do jirau, deixei o feijão de molho nos vasilhames que ia retirando da massa de entulho. Os imprestáveis, eu colocava de um lado, os que ainda poderiam ser utilizados, em outro. Trouxe os peixes para o jirau e aproveitei a faca que já estava ali. Retirei as tripas, salguei – o sal estava ao alcance de Tobias, na mesa – e deixei marinar no tempero verde e no limão fresco que tinha em seu quintal. Enquanto isso, coloquei as achas de madeira no fogão velho quase imprestável. Como acender aquele fogo? Não achava nem fósforo nem querosene. Vasculhei perto do fogão, por cima da mesa, entre os entulhos. Nada. Não perdi tempo, estava decidida a dar um jeito em tudo enquanto separava os objetos bons dos avariados. Tentava organizar, fazer daquela casa um lugar de morada. Afastava as teias de aranha dos cantos, enquanto pensava se deveria ir à próxima casa da vizinhança para pedir um pouco de querosene ou brasa para acender o fogo. Deveria ser de alguém conhecido. Há tanto tempo morando ali, os trabalhadores viviam como uma grande família, preservando até as boas disputas e brigas que os verdadeiros parentes têm.
Decidi sair para tentar encontrar fogo. O sol já se encontrava no alto e uma brisa morna chegava ao meu corpo molhado de suor. Levei um pedaço pequeno de lenha comigo para poder dizer a quem encontrasse pelo caminho que precisava de chama.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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