segunda-feira, 14 de junho de 2021

Lições de sobrevivência que ETs me ensinaram

A julgar pela quantidade sempre renovada de filmes e livros sobre ETs de todos os tipos, fica óbvio que temos um fascínio inesgotável por essas criaturas imaginárias. Seres alienígenas habitam as profundezas do nosso inconsciente coletivo, espelhos do bem e do mal que somos capazes de fazer. Basta uma breve incursão na história do colonialismo, e, em particular, do embate entre os europeus e os nativos das Américas, da África e do Pacífico, para entender que, quando duas culturas colidem, a mais ingênua e desarmada perde feio. Somos nós os alienígenas. No decorrer da história, as representações ficcionais de seres extraterrestres refletem o que sabemos do mundo, o que sabemos de nós, os nossos medos e expectativas, as nossas esperanças e os nossos medos.
Existe, porém, algo que raramente consideramos em nossas reflexões sobre alienígenas. Não me refiro, aqui, aos tipos ficcionais que vivem nas páginas de nossos livros ou nas telas de cinema, mas aos que possivelmente existem em algum canto da nossa galáxia, ou de uma galáxia bem longe da nossa. Basta lembrar que nossa galáxia é uma dentre centenas de bilhões de outras espalhadas pela vastidão do espaço, cada qual contendo de dezenas de milhões a centenas de bilhões de estrelas. Portanto, a probabilidade de que inteligências extraterrestres existam é razoável, mesmo se nunca tivemos contato direto.
Se existem, e este é o ponto que nos interessa, como sobrevivem aos seus desafios sociais, políticos e econômicos? Mesmo especulando sobre a existência de civilizações extraterrestres, podemos aprender lições essenciais sobre alguns de nossos dilemas atuais mais desafiadores, incluindo a sobrevivência de nossa própria espécie. Ou seja, podemos aprender lições de sobrevivência planetária com os ETs, o que é cada vez mais essencial nos dias de hoje.
Antes disso, é bom rever algumas informações importantes, de modo a contextualizar nosso argumento. Como é o caso conosco aqui na Terra, os alienígenas vivem ou se originaram em algum planeta (ou lua) em órbita em torno de uma estrela. Para simplificar, vamos considerar apenas ETs com características gerais relativamente semelhantes às nossas: por exemplo, vida baseada em compostos de carbono e dependente de água. É possível que tenham evoluído muito além desses vínculos químicos, sendo mais máquinas do que carbono.
De qualquer forma, certamente tiveram uma origem bioquímica, mesmo que tenha ocorrido milhões de anos no passado. Sua sobrevivência, tal como a nossa aqui, depende crucialmente da quantidade de energia emitida pelo seu sol em forma de radiação, e de como essa radiação interage com a atmosfera do planeta (ou lua) onde habitam. No nosso caso, a Terra absorve cerca de 71% da energia total do Sol que chega aqui: em torno de 23% dessa energia é absorvida na atmosfera por vapor d'água, poeira e ozônio, e cerca de 48% na superfície.
São aproximadamente 160 watts por metro quadrado no solo. Imagine cobrir a superfície da Terra com lâmpadas de 160 watts a cada metro quadrado e tê-las iluminadas durante o Natal. Não seria um uso muito inteligente de energia, mas certamente uma imagem belíssima, se observada de altas altitudes. Para que um planeta possa acolher formas de vida por um tempo relativamente longo (no mínimo, milhões de anos), é essencial que seja relativamente estável: sua órbita em torno da estrela não pode ser errática; sua composição atmosférica não pode mudar radicalmente em períodos geológicos curtos (de milhões de anos); seu clima deve ser estável, com flutuações de temperatura dentro do que é permissível metabolicamente, ou seja, não muito mais do que 100 graus em torno de zero Celsius. (Ou seja, de -50ºC a 50ºC. Existem exceções, como os seres que vivem perto de ventas vulcânicas submarinas onde as temperaturas podem ser mais altas. Mesmo assim, existem limites para que a vida seja viável.)
O planeta precisa, também, receber enormes quantidades de energia, redistribuindo-a pela superfície através de processos climáticos e geológicos. Qualquer espécie alienígena que exista na nossa galáxia, principalmente se for inteligente, que é o que nos interessa aqui, precisará habitar um mundo que tenha propriedades gerais semelhantes a essas. Por que as formas de vida inteligente precisam de maior estabilidade? Porque, para que a vida possa evoluir a partir de formas rudimentares, os seres unicelulares, até seres multicelulares complexos e, destes, até seres inteligentes, são necessários muitos milhões de anos, se não bilhões. (Aqui na Terra, foram pelo menos 3,5 bilhões de anos.)
Da mesma forma que não dá para assistir à última cena de uma peça teatral com três horas de duração num teatro que pega fogo após uma hora, o palco em que ocorre a transformação da química inanimada em vida complexa, o planeta, tem que permitir que esse drama bioquímico evolua a passos lentos. E não há a menor garantia de que haverá um final feliz. (Se entendermos por felicidade a emergência de criaturas inteligentes.)
Nossa espécie existe há aproximadamente 200 mil anos, um tempo irrelevante quando comparado aos 4,5 bilhões de anos do nosso planeta. Num contexto cósmico, em que mesmo milhões de anos são um período efêmero, somos uma espécie ainda bebê, com muitos desafios a enfrentar pela frente, especialmente no que tange à nossa sobrevivência em longo prazo. É aqui que os ETs podem ser úteis. A primeira coisa que devemos notar, ao menos baseados na nossa história, é que duas ou mais espécies inteligentes não podem coexistir no mesmo planeta. (Note que existem vários modos de definir e quantificar inteligência. Estou interessado aqui em espécies com inteligência criativa capaz de desenvolver tecnologias avançadas.)
Dada a natureza combativa dos seres vivos, centrados, acima de tudo, na sobrevivência, outra espécie inteligente seria vista como uma ameaça, ao menos no início da corrida evolucionária. Aqui na Terra, os neandertais, que mostraram sinais de inteligência superior a outras espécies que os antecederam, foram parcialmente assimilados e, na maioria, aniquilados pelos nossos ancestrais.
A coexistência pacífica entre duas espécies que podem competir em pé de igualdade por recursos necessários para a sobrevivência é implausível, a menos que ambas tenham atingido um patamar moral extremamente elevado. Porém, até que isso ocorra, a partir do desenvolvimento de uma estrutura social estável e democrática onde a vida é respeitada acima de tudo, seria provavelmente tarde demais. (Mesmo numa mesma espécie, especialmente uma espécie inteligente com padrão moral inferior, valores culturais distintos e diferenças étnicas podem levar a conflitos sérios, do racismo a perseguições ideológicas, como vemos aqui todos os dias. Mas esse é um assunto para outro ensaio.)
Dada a dificuldade de coexistência entre duas espécies inteligentes, vamos, portanto, considerar seres alienígenas de uma mesma espécie, que, de alguma forma, encontraram os meios físicos e morais para sobreviver por milhões de anos. Quais os seus segredos? Antes de tudo, entenderam que uma relação predatória com o seu planeta e com outras formas de vida levaria, mais cedo ou mais tarde, à sua própria destruição. Entenderam, também, que o seu planeta, mesmo que muito grande e fértil, tem recursos limitados, e que uma exploração irracional dele iria transformá-lo num deserto. O exemplo doloroso da Ilha de Páscoa ilustra perfeitamente o que poderia ocorrer numa escala global com uma espécie que tem uma relação parasítica com a terra da qual depende.
Os alienígenas teriam aprendido a viver com – e não contra – o seu planeta, respeitando seus recursos e planejando cuidadosamente como explorá-los de forma sustentável. Teriam aprendido a otimizar e maximizar o uso da energia vinda de sua estrela, como estamos começando a fazer aqui com a energia solar e eólica. Se a estrela não emitisse energia necessária para suas necessidades, os alienígenas teriam desenvolvido espelhos e outras tecnologias capazes de focar e aumentar a quantidade de energia atingindo a superfície do planeta.
Os alienígenas teriam entendido a interconectividade de todas as criaturas vivas; saberiam que ocupar o topo da cadeia alimentar significa ter a responsabilidade de preservar a biosfera, de modo a estender o uso de seus recursos por período ilimitado. Teriam aprendido que, para viver, precisariam encontrar meios de respeitar a diversidade da vida. Isso só poderia ocorrer se houvessem redefinido sua relação com outras criaturas vivas, indo de predadores a protetores.
Os alienígenas teriam entendido que a disparidade financeira (se tivessem uma economia) e a manipulação cultural levam à pobreza e à instabilidade social, ambas as causas dominantes da predação planetária; e que, para garantir sua sobrevivência em longo prazo, precisariam erradicar a desigualdade social. Teriam, portanto, criado valores morais que garantissem a igualdade social, dividindo recursos naturais e econômicos de forma justa e equilibrada.
Por outro lado, não teriam erradicado a competição, por entenderem ser essencial para a inovação e a felicidade individual e coletiva; teriam, sim, criado mecanismos para assegurar que todos tivessem as mesmas oportunidades de atingir o sucesso. Saberiam que uma sociedade justa não precisa, ou não deve, ser estéril. Teriam entendido que essas metas socioeconômicas pedem o sacrifício dos que detêm mais recursos, mas saberiam, também, que esses sacrifícios seriam temporários, garantindo a sobrevivência de todos. Teriam criado, em longo prazo, uma sociedade com certo nível de disparidade – pois seus intelectuais já teriam entendido que a igualdade total leva a uma distopia – baseada na dignidade, no respeito e na justiça.
O resultado desse projeto alienígena de proteção de recursos naturais e justiça social em escala planetária seria revolucionário. Podemos chamá-lo de “socialismo natural”. Uma vez iniciado, produziria uma transição nos valores morais da espécie, apagando os últimos vestígios da brutalidade intrínseca oriunda das disparidades e impulsos evolucionários. Levaria a uma nova era, baseada numa relação moral superior com o planeta, os animais, e entre todos os membros da sociedade. Essa nova era celebraria, ao mesmo tempo, a diferença individual e a unidade que conecta os habitantes de uma mesma espécie, todos dividindo o planeta e seus recursos naturais. Esses alienígenas teriam sobrevivido por milhões de anos, criando uma sociedade que mal podemos imaginar.
Temos, aqui na Terra, nesse conturbado século XXI, muito trabalho pela frente.

Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul

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