segunda-feira, 29 de junho de 2020

A terra do sul

Caninos Brancos desembarcou do vapor em San Francisco. Ficou estarrecido. No âmago mais profundo de si mesmo, abaixo de qualquer processo de raciocínio ou ato de consciência, ele tinha associado o poder com a divindade. E jamais os homens brancos lhe pareceram deuses tão maravilhosos como agora, quando caminhava pelo calçamento escorregadio de San Francisco. As cabanas de toras que conhecera eram substituídas por prédios elevados. As ruas estavam cheias de perigos – carros, carroças, automóveis; grandes cavalos puxando com esforço imensos caminhões; e monstruosos bondes elétricos e a cabo buzinando e ressoando pelo meio, berrando a sua ameaça insistente à maneira dos linces que ele conhecera nas matas do norte.
Tudo isso era a manifestação de poder. Através de tudo, por trás de tudo, estava o homem, governando e controlando, expressando-se, como antigamente, pelo seu domínio sobre a matéria. Era colossal, atordoador. Caninos Brancos estava aterrado. O medo pousou na sua mente. Assim como, nos seus dias de filhote, fora obrigado a sentir a sua pequenez e insignificância no dia em que saiu pela primeira vez da Floresta para a vila de Castor Cinza, agora, na sua estatura plenamente desenvolvida e no orgulho da sua força, era obrigado a sentir-se pequeno e insignificante. E havia tantos deuses! Ele estava tonto com o enxame de deuses. O trovão das ruas batia em seus ouvidos. Estava perplexo diante do tremendo e interminável ímpeto e movimento das coisas. Como nunca antes, ele agora sentia a sua dependência do senhor do amor, no encalço de cujos passos seguia, jamais o perdendo de vista não importa o que acontecesse.
Mas Caninos Brancos não devia ter mais do que uma visão de pesadelo da cidade – uma experiência como um sonho ruim, irreal e terrível, que o assombrou muito tempo depois nos seus sonhos. O dono o colocou num vagão de bagagem, preso num canto no meio de arcas e valises empilhadas. Ali dominava um deus atarracado e musculoso, fazendo muito barulho, atirando as arcas e as caixas de um lado para o outro, arrastando-as pela porta e jogando-as nas pilhas, ou lançando-as para fora da porta, em meio a choques e colisões, a outros deuses que as aguardavam.
E ali, nesse inferno de bagagem, Caninos Brancos foi abandonado pelo dono. Ou, pelo menos, Caninos Brancos pensou que fora abandonado, até sentir o cheiro das malas de roupas do dono a seu lado e passar a vigiá-las.
Já estava mais que na hora de o senhor aparecer – resmungou o deus do vagão, uma hora mais tarde, quando Weedon Scott surgiu na porta. – Esse seu cachorro não me deixa pôr nem um dedo nas suas coisas.
Caninos Brancos saiu do vagão. Ficou atônito. A cidade do pesadelo desaparecera. O vagão não tinha sido para ele mais do que um quarto numa casa, e quando entrara no recinto, a cidade estava toda ao seu redor. No intervalo, a cidade tinha sumido. O rugido já não aturdia seus ouvidos. Diante dele estava um campo sorridente, inundado de sol, indolente na sua quietude. Mas Caninos Brancos não teve muito tempo para se maravilhar com a transformação. Ele a aceitou como aceitava todas as atividades e manifestações inexplicáveis dos deuses. Era o seu modo de ser.
Um coche estava esperando. Um homem e uma mulher aproximaram-se do dono. Os braços da mulher se abriram e fecharam em torno do pescoço do dono – um ato hostil! No momento seguinte, Weedon Scott já se soltara do abraço e agarrava Caninos Brancos, que se tornara um demônio enfurecido a rosnar.
Tudo bem, mamãe – dizia Scott, enquanto agarrava Caninos Brancos com firmeza e o acalmava. – Ele achou que você fosse me atacar e não aguentou. Tudo bem. Tudo bem. Vai aprender logo, logo.
E espero que nesse meio tempo eu possa acarinhar o meu filho, quando o seu cachorro não estiver por perto – ela riu, embora estivesse pálida e trêmula de susto.
Ela olhou para Caninos Brancos, que rosnou e eriçou o pelo, fitando-a com olhos malévolos.
Ele vai ter que aprender, e vai aprender sem demora – disse Scott.
Falou suavemente com Caninos Brancos até o acalmar, depois a sua voz tornou-se firme.
Deita! Deita!
Esse fora um dos truques que o dono lhe ensinara, e Caninos Brancos obedeceu, embora se deitasse com relutância e morosidade.
Agora, mãe.
Scott lhe abriu os braços, mas manteve os olhos em Caninos Brancos.
Deita! – avisou. – Deita!
Eriçando o pelo em silêncio, meio agachado porque já se levantava, Caninos Brancos deitou-se de novo e observou o ato hostil ser repetido. Mas nenhum mal aconteceu, nem do abraço do estranho homem-deus que se seguiu. Depois as malas de roupas foram colocadas no coche, os estranhos deuses e o senhor do amor também subiram no carro, e Caninos Brancos os seguiu, ora correndo vigilantemente atrás, ora eriçando o pelo para os cavalos na corrida, avisando-os que ele estava ali para cuidar que nenhum mal acontecesse ao deus que eles puxavam tão velozmente pela terra.
Ao final de quinze minutos, o coche entrou balançando por um portão de pedra e seguiu entre uma fila dupla de nogueiras arqueadas e entrelaçadas. Nos dois lados estendiam-se gramados, a sua larga extensão quebrada, aqui e ali, por grandes carvalhos de ramos robustos. Nas proximidades, em contraste com o verde claro da grama cuidada, os campos de feno queimados de sol exibiam um tom bronzeado e dourado, enquanto mais além viam-se os morros castanhos amarelados e as pastagens nas montanhas. Do topo do gramado, na primeira ondulação suave do nível do vale, a casa de varandas fundas e muitas janelas erguia-se sobranceira.
Caninos Brancos não teve muita oportunidade de ver tudo isso. Mal o coche tinha entrado no terreno da casa, quando foi provocado por um cão pastor, de olhos brilhantes, focinho afilado, justamente indignado e zangado. Estava entre ele e o dono, isolando-o. Caninos Brancos não deu nenhum rosnado de aviso, mas o seu pelo se eriçou enquanto partia para o ataque silencioso e mortal. O ataque nunca se completou. Caninos Brancos parou de um modo abrupto e desajeitado, com as patas dianteiras rígidas retesando o corpo contra o seu momentum, quase sentando-se sobre as ancas, tão desejoso estava de evitar o contato com o cachorro que já estava prestes a atacar. Era uma fêmea, e a lei da sua espécie erguia uma barreira entre eles. Atacá-la exigia de Caninos Brancos nada menos que uma violação do seu instinto.
Mas com a cachorra pastora era diferente. Sendo uma fêmea, ela não possuía esse instinto. Por outro lado, sendo uma cachorra pastora, o seu medo instintivo da Floresta, e especialmente do lobo, era extraordinariamente agudo. Caninos Brancos era um lobo, o saqueador hereditário que pilhara os seus rebanhos desde o tempo em que as ovelhas foram pela primeira vez agrupadas e guardadas por algum de seus obscuros ancestrais. E assim, enquanto ele abandonava a arremetida e retesava-se para evitar o contato, ela pulava em cima dele. Caninos Brancos rosnou involuntariamente ao sentir os dentes no seu ombro, mas fora isso não tentou machucá-la. Recuou, as patas enrijecidas de constrangimento, e tentou passar ao redor dela. Esquivou-se deste ou daquele lado, curvou-se e virou-se, mas em vão. Ela continuava entre ele e o caminho por onde queria prosseguir.
Aqui, Collie! – chamou o homem estranho no coche.
Weedon Scott riu.
Não faz mal, papai. É uma boa disciplina. Caninos Brancos vai ter de aprender muitas coisas, e é bom começar desde já. Ele vai acabar se adaptando bem.
O coche seguiu adiante, e Collie continuava a bloquear a passagem de Caninos Brancos. Ele tentou ultrapassá-la na corrida, deixando o caminho e circulando pelo gramado; mas ela corria no círculo interno e menor, sempre presente, enfrentando-o com as suas duas filas de dentes brilhantes. Ele deu meia volta, passando pelo caminho para o outro gramado, e mais uma vez ela o forçou a se desviar.
O coche estava levando o dono embora. Caninos Brancos o vislumbrava desaparecer entre as árvores. A situação era desesperada. Ele tentou outro círculo. Ela seguiu, correndo rápida. E então, de repente, ele se virou contra Collie. Era o seu velho truque de luta. Ombro a ombro, ele a atacou em cheio. Ela não foi só derrubada. Tão veloz corria que rolou pela grama, ora sobre o lombo, ora sobre o lado, enquanto lutava para se deter, agarrando-se ao cascalho com as patas, e gritando agudamente o seu orgulho ferido e a sua indignação.
Caninos Brancos não esperou. O caminho estava desimpedido, e isso era tudo o que ele queria. Ela partiu atrás dele, sem cessar o seu alarido. Era um caminho reto agora e, quando começaram a correr realmente, Caninos Brancos foi capaz de lhe ensinar muitas coisas. Ela corria freneticamente, histericamente, empregando o máximo das suas forças, anunciando o esforço que fazia a cada pulo; e, durante todo esse tempo, Caninos Brancos corria facilmente à sua frente, sem esforços, deslizando como um fantasma sobre o terreno.
Ao rodear a casa até a porte-cochère, ele alcançou o coche. O carro tinha parado, e o dono estava descendo. Nesse momento, ainda correndo a toda velocidade, Caninos Brancos percebeu de repente um ataque pelo lado. Era um galgo que se precipitava sobre ele. Caninos Brancos tentou enfrentá-lo. Mas corria com demasiada velocidade, e o galgo estava perto demais. O cachorro o golpeou no lado, e tal era o seu momentum para diante, e tal foi a surpresa do ataque, que Caninos Brancos foi jogado ao chão, onde rolou completamente derrubado. Ele saiu do emaranhado um espetáculo de malignidade, as orelhas achatadas para trás, os lábios contorcidos, o focinho enrugado, os dentes estalando após as presas errarem por pouco a garganta macia do galgo.
O dono vinha correndo, mas estava longe demais, e foi Collie quem salvou a vida do galgo. Antes que Caninos Brancos pudesse pular e dar o golpe fatal, bem quando ele estava no ato de saltar em cima do galgo, Collie chegou. Ela fora vencida em habilidade e na corrida, sem falar no fato de ter sido derrubada sem cerimônia no cascalho, e a sua chegada foi como a de um tornado – composto de dignidade ofendida, fúria justificada e ódio instintivo por esse saqueador da Floresta. Atacou Caninos Brancos em ângulo reto no meio do seu pulo, e ele mais uma vez foi derrubado e rolou pelo chão.
No momento seguinte chegava o dono, que com uma das mãos segurou Caninos Brancos, enquanto o pai afastava os outros cachorros.
Sim, senhor, uma recepção muito calorosa para um pobre lobo solitário do Ártico – disse o dono, enquanto Caninos Brancos se acalmava sob a sua mão acariciadora. – Em toda a sua vida só se sabe de uma vez em que foi derrubado, e agora ele rolou pelo chão duas vezes em trinta segundos.
O coche se afastara, e outros deuses estranhos tinham saído da casa. Alguns mantinham-se respeitosamente a distância, mas dois deles, mulheres, cometeram o ato hostil de agarrar o dono pelo pescoço. Entretanto, Caninos Brancos estava começando a tolerar esse ato. Não parecia causar nenhum mal, e os barulhos que os deuses produziam não eram certamente ameaçadores. Esses deuses também faziam tentativas de se aproximar de Caninos Brancos, mas ele os afastava com um rosnado de aviso, e o dono também alertava com palavras. Nessas ocasiões, Caninos Brancos encostava-se nas pernas do dono e recebia palmadinhas tranquilizadoras na cabeça.
Ao ouvir a ordem “Dick! Deita!”, o galgo subira os degraus e deitara-se num dos lados da varanda, ainda rosnando e mantendo o intruso sob uma vigilância soturna. Uma das deusas-mulheres encarregou-se de Collie, com os braços ao redor do seu pescoço, afagando-a e acariciando-a; mas Collie estava muito perplexa e preocupada, ganindo e inquieta, ultrajada pela presença permitida desse lobo, segura de que os deuses estavam cometendo um erro.
Todos os deuses começaram a subir os degraus para entrar na casa. Caninos Brancos seguiu no encalço do dono. Dick, na varanda, rosnou, e Caninos Brancos, nos degraus, eriçou o pelo e rosnou em resposta.
Leve Collie para dentro e deixe os dois brigarem – sugeriu o pai de Scott. – Depois disso ficarão amigos.
Nesse caso Caninos Brancos, para mostrar a sua amizade, terá de ser o principal pranteador no funeral – riu o dono.
O velho Scott olhou incrédulo, primeiro para Caninos Brancos, depois para Dick, e finalmente para o filho.
Você quer dizer que...?
Weedon acenou com a cabeça.
Exatamente isso. Você teria um Dick morto em um minuto... dois minutos no máximo.
Ele virou-se para Caninos Brancos. – Vamos, lobo. É você que terá de entrar.
Caninos Brancos subiu os degraus e cruzou a varanda de pernas enrijecidas, com o rabo rigidamente ereto, mantendo os olhos em Dick para evitar um ataque pelo flanco, e preparado ao mesmo tempo para qualquer manifestação feroz do desconhecido que pudesse saltar sobre ele lá do interior da casa. Mas nada temível apareceu inesperadamente e, quando entrou na casa, explorou o terreno com cuidado, procurando o temível sem encontrá-lo. Depois deitou-se com um grunhido de satisfação aos pés do dono, observando tudo o que acontecia, sempre pronto a se levantar de um salto e a lutar pela vida com os terrores que, sentia, deviam estar à espreita sob a armadilha do teto da morada.
Jack London, in Caninos Brancos

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