É
uma das recordações mais desagradáveis que me ficaram: sujeito
magro, de olho duro, aspecto tenebroso. Não me lembro de o ter visto
sorrir. A voz áspera, modos sacudidos, ranzinza, impertinente,
Fernando era assim. E junto a isso qualquer coisa de frio, úmido,
viscoso, que me dava a absurda impressão de uma lesma vertebrada e
muito rápida.
Se
se dirigia a mim, largava alguma frase contundente. Às vezes,
atentando na significação dela, eu não achava motivo para me
ofender, mas o jeito como ele se expressava, a sobrancelha carregada,
o ar de suficiência e impostura, o riso brusco, um erguer de ombros,
um balançar de cabeça, tudo me produzia mal-estar. Era como se ele
me quisesse cortar com lâminas de gelatina.
Cresci
ouvindo as piores referências a Fernando. Se fosse tão mau como
afirmavam, não existia patife igual. Era parente do chefe político,
e um chefe político da roça naquele tempo mandava mais que um soba,
dispunha das pessoas e manipulava as autoridades, bonecos miseráveis.
Vivíamos num grande cercado de engenho, e só tinha sossego quem
adulava o senhor. Os jornais da capital noticiavam horrores, mas
ninguém se atrevia a assinar uma denúncia. Qualquer indiscrição
podia originar incêndios, bordoadas, prisões ou mortes.
Presumo
que, enquanto morei ali, o júri não funcionou. Contudo chegavam
defuntos à cidade quase diariamente. Em geral vinham em redes
cobertas de pano vermelho. Mas quando eram muitos, arrumavam-se em
costas de animais, embiravam-se em cabeçotes de cangalhas. E os
cavalos ensanguentados percorriam caminhos, topavam nas pedras das
ruas, paravam à porta da cadeia, onde se aquartelava o destacamento
da polícia.
O
velho Frade, influente num município vizinho, dizia que nunca matara
um homem. Matava cabra ruim, muito cabra ruim. No meu município
também se assassinavam homens, embora se preferissem os cabras
ruins. Quando um proprietário governista queria molestar um
adversário, mandava suprimir-lhe alguns moradores — e a pessoa
ameaçada vendia-lhe a terra por menos do valor.
Se
não vendia logo, novos moradores iam desaparecendo, até que a
transação se efetuava. Só raramente, em casos de ofensas pessoais,
questões de família, se eliminavam membros da classe elevada. A
esses tomavam-se os bens, por meios mais ou menos legais. Mas a
canalha era dizimada, os cabras ruins do velho Frade morriam em
abundância, e a gente se habituava aos cadáveres que manchavam a
cidade.
Regime
forte. O chefe conversava direito, falava na Coréia, torcia pelo
Japão contra a Rússia em 1905, discutia gramática às vezes. De
bom humor, ninguém o julgaria capaz de sangrar um pinto, mas
encolerizava-se facilmente e berrava nas esquinas injúrias a amigos
e inimigos. Perdia os estribos, rugia, lastimava-se, dizia-se rodeado
por malandros que lhe enodoavam a reputação. Os malandros, assim
atacados, encolhiam-se em ordem junto aos balcões das lojas onde
preguiçavam, escondiam-se por detrás das folhas da capital, cheias
de correspondências ferozes e anônimas, que me pareciam exageradas.
As surras em tipos indesejáveis e o aparecimento de caboclos mortos
eram fatos vulgares, mal justificavam a indignação impressa. O
Coronel se defendia aos gritos, espumava; os aderentes, medrosos,
balbuciavam, tentavam descobrir os autores das infames acusações.
Fervilhavam suspeitas. E dias depois era certo alguém ser agredido
em público, a chicote ou cacete.
Nunca
vi regime tão forte. Amigo pequeno, Fernando recebia as iras
destinadas a outros e não reagia. Numa reviravolta política, expôs
claramente a sua natureza de tabela de bilhar: aguentou sova. Mas
naquele tempo só o patrão, dono dos corpos e das almas, tinha o
poder de humilhá-lo. Ouvidos os insultos, Fernando se recompunha,
tornava-se insolente, apavorava os infelizes das pontas de ruas.
Especializara-se em desgraçar meninas pobres, que se rendiam por
medo ou eram violentadas. Algumas vezes as próprias mães iam
levá-las ao sacrifício.
Lembro-me
da Ratinha, linda criatura. Em noites de festa vestia roupas
vermelhas, mostrava duas rosas vermelhas nas bochechas, sorria com um
sorriso vermelho, era toda uma vermelhidão triunfante — e isto a
perdeu. A Rata velha tinha olhos de rato, dedos finos de rato,
focinho de rato, modos de rato. O Rato irmão era um rapaz miúdo,
narigudo, inquieto. A Ratinha se diferençava da família, não se
distinguia das moças de consideração. Engelhou e envelheceu num
beco escuro.
Na
cidade havia numerosas meretrizes, um horror de meretrizes, até
crianças de doze anos, imposto arrancado aos que não possuíam
fazenda. Os homens remediados, que o Coronel afligia em horas de
rabugice, não pagavam imposto ou pagavam muito pouco. E Fernando,
parente próximo do governo e fiscal da Intendência, atenazava a
oposição, esfolava matutos nas feiras, colhia virgindades.
Essas
noções me chegavam lentas e incompletas. Novo ainda, eu não
entendia certas coisas. Entretanto aquele indivíduo me causava
arrepios. Sempre foi demasiado grosseiro comigo, e isto me levou a
aceitar sem exame os boatos que circulavam a respeito dele.
Acostumei-me a julgá-lo um bicho perigoso. E lendo no dicionário
encarnado, onde existiam bandeiras de todos os países e retratos de
personagens vultosas, que Nero tinha sido o maior dos monstros,
duvidei. Maior que Fernando? A afirmação do livro me embaraçava.
Como seria possível medir por dentro as pessoas? E senti pena de
Nero, que nunca me havia feito mal. Fernando me atormentava e era
péssimo. Talvez não fosse o pior monstro da Terra, mas era
safadíssimo. O rosto de caneco amassado, a fala dura e impertinente,
os resmungos, o olho oblíquo e cheio de fel, um jeito impudente e
desgostoso, um ronco asmático findo em sopro, tudo me dava a certeza
de que Fernando encerrava muito veneno. Se aquele sopro, rumor de
caldeira, se transformava em palavras, saíam dali brutalidades. O
sujeito se tornou para mim um símbolo — e pendurei nele todas as
misérias.
Pois
um dia a minha convicção se abalou profundamente. Os dois
empregados abriam caixões na loja. Fernando cochilava no banco,
junto ao armário das perfumarias. Aos golpes dos martelos, as
talhadeiras cortavam arcos de ferro, a madeira se despregava, rangia.
Concluído o trabalho, recolheram-se os papéis e o capim da
embalagem, distribuiu-se a mercadoria em lotes, José Batista, da
carteira, leu as faturas para a conferência.
Foi
aí que veio o grande sucesso. Uma das tábuas ficara no chão,
crivada de pregos. Fernando levantou-se, apanhou-a, agarrou um
martelo, pôs-se a entortar os bicos agudos, a rosnar. Desleixo. Se
uma criança descalça pisasse naquilo? Eu não acreditava nos meus
olhos nem acreditava nos meus ouvidos.
Então
Fernando não era mau? Pensei num milagre. Julguei ter sido injusto.
Fernando, o monstro, semelhante a Nero, receava que as crianças
ferissem os pés. Esqueci as torpezas cochichadas, condenei o
dicionário vermelho que tinha bandeiras e retratos. Talvez Nero, o
pior dos seres, envergasse os pregos que poderiam furar os pés das
crianças.
Graciliano
Ramos, in Infância
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