domingo, 10 de maio de 2020

Fernando

É uma das recordações mais desagradáveis que me ficaram: sujeito magro, de olho duro, aspecto tenebroso. Não me lembro de o ter visto sorrir. A voz áspera, modos sacudidos, ranzinza, impertinente, Fernando era assim. E junto a isso qualquer coisa de frio, úmido, viscoso, que me dava a absurda impressão de uma lesma vertebrada e muito rápida.
Se se dirigia a mim, largava alguma frase contundente. Às vezes, atentando na significação dela, eu não achava motivo para me ofender, mas o jeito como ele se expressava, a sobrancelha carregada, o ar de suficiência e impostura, o riso brusco, um erguer de ombros, um balançar de cabeça, tudo me produzia mal-estar. Era como se ele me quisesse cortar com lâminas de gelatina.
Cresci ouvindo as piores referências a Fernando. Se fosse tão mau como afirmavam, não existia patife igual. Era parente do chefe político, e um chefe político da roça naquele tempo mandava mais que um soba, dispunha das pessoas e manipulava as autoridades, bonecos miseráveis. Vivíamos num grande cercado de engenho, e só tinha sossego quem adulava o senhor. Os jornais da capital noticiavam horrores, mas ninguém se atrevia a assinar uma denúncia. Qualquer indiscrição podia originar incêndios, bordoadas, prisões ou mortes.
Presumo que, enquanto morei ali, o júri não funcionou. Contudo chegavam defuntos à cidade quase diariamente. Em geral vinham em redes cobertas de pano vermelho. Mas quando eram muitos, arrumavam-se em costas de animais, embiravam-se em cabeçotes de cangalhas. E os cavalos ensanguentados percorriam caminhos, topavam nas pedras das ruas, paravam à porta da cadeia, onde se aquartelava o destacamento da polícia.
O velho Frade, influente num município vizinho, dizia que nunca matara um homem. Matava cabra ruim, muito cabra ruim. No meu município também se assassinavam homens, embora se preferissem os cabras ruins. Quando um proprietário governista queria molestar um adversário, mandava suprimir-lhe alguns moradores — e a pessoa ameaçada vendia-lhe a terra por menos do valor.
Se não vendia logo, novos moradores iam desaparecendo, até que a transação se efetuava. Só raramente, em casos de ofensas pessoais, questões de família, se eliminavam membros da classe elevada. A esses tomavam-se os bens, por meios mais ou menos legais. Mas a canalha era dizimada, os cabras ruins do velho Frade morriam em abundância, e a gente se habituava aos cadáveres que manchavam a cidade.
Regime forte. O chefe conversava direito, falava na Coréia, torcia pelo Japão contra a Rússia em 1905, discutia gramática às vezes. De bom humor, ninguém o julgaria capaz de sangrar um pinto, mas encolerizava-se facilmente e berrava nas esquinas injúrias a amigos e inimigos. Perdia os estribos, rugia, lastimava-se, dizia-se rodeado por malandros que lhe enodoavam a reputação. Os malandros, assim atacados, encolhiam-se em ordem junto aos balcões das lojas onde preguiçavam, escondiam-se por detrás das folhas da capital, cheias de correspondências ferozes e anônimas, que me pareciam exageradas. As surras em tipos indesejáveis e o aparecimento de caboclos mortos eram fatos vulgares, mal justificavam a indignação impressa. O Coronel se defendia aos gritos, espumava; os aderentes, medrosos, balbuciavam, tentavam descobrir os autores das infames acusações. Fervilhavam suspeitas. E dias depois era certo alguém ser agredido em público, a chicote ou cacete.
Nunca vi regime tão forte. Amigo pequeno, Fernando recebia as iras destinadas a outros e não reagia. Numa reviravolta política, expôs claramente a sua natureza de tabela de bilhar: aguentou sova. Mas naquele tempo só o patrão, dono dos corpos e das almas, tinha o poder de humilhá-lo. Ouvidos os insultos, Fernando se recompunha, tornava-se insolente, apavorava os infelizes das pontas de ruas. Especializara-se em desgraçar meninas pobres, que se rendiam por medo ou eram violentadas. Algumas vezes as próprias mães iam levá-las ao sacrifício.
Lembro-me da Ratinha, linda criatura. Em noites de festa vestia roupas vermelhas, mostrava duas rosas vermelhas nas bochechas, sorria com um sorriso vermelho, era toda uma vermelhidão triunfante — e isto a perdeu. A Rata velha tinha olhos de rato, dedos finos de rato, focinho de rato, modos de rato. O Rato irmão era um rapaz miúdo, narigudo, inquieto. A Ratinha se diferençava da família, não se distinguia das moças de consideração. Engelhou e envelheceu num beco escuro.
Na cidade havia numerosas meretrizes, um horror de meretrizes, até crianças de doze anos, imposto arrancado aos que não possuíam fazenda. Os homens remediados, que o Coronel afligia em horas de rabugice, não pagavam imposto ou pagavam muito pouco. E Fernando, parente próximo do governo e fiscal da Intendência, atenazava a oposição, esfolava matutos nas feiras, colhia virgindades.
Essas noções me chegavam lentas e incompletas. Novo ainda, eu não entendia certas coisas. Entretanto aquele indivíduo me causava arrepios. Sempre foi demasiado grosseiro comigo, e isto me levou a aceitar sem exame os boatos que circulavam a respeito dele. Acostumei-me a julgá-lo um bicho perigoso. E lendo no dicionário encarnado, onde existiam bandeiras de todos os países e retratos de personagens vultosas, que Nero tinha sido o maior dos monstros, duvidei. Maior que Fernando? A afirmação do livro me embaraçava. Como seria possível medir por dentro as pessoas? E senti pena de Nero, que nunca me havia feito mal. Fernando me atormentava e era péssimo. Talvez não fosse o pior monstro da Terra, mas era safadíssimo. O rosto de caneco amassado, a fala dura e impertinente, os resmungos, o olho oblíquo e cheio de fel, um jeito impudente e desgostoso, um ronco asmático findo em sopro, tudo me dava a certeza de que Fernando encerrava muito veneno. Se aquele sopro, rumor de caldeira, se transformava em palavras, saíam dali brutalidades. O sujeito se tornou para mim um símbolo — e pendurei nele todas as misérias.
Pois um dia a minha convicção se abalou profundamente. Os dois empregados abriam caixões na loja. Fernando cochilava no banco, junto ao armário das perfumarias. Aos golpes dos martelos, as talhadeiras cortavam arcos de ferro, a madeira se despregava, rangia. Concluído o trabalho, recolheram-se os papéis e o capim da embalagem, distribuiu-se a mercadoria em lotes, José Batista, da carteira, leu as faturas para a conferência.
Foi aí que veio o grande sucesso. Uma das tábuas ficara no chão, crivada de pregos. Fernando levantou-se, apanhou-a, agarrou um martelo, pôs-se a entortar os bicos agudos, a rosnar. Desleixo. Se uma criança descalça pisasse naquilo? Eu não acreditava nos meus olhos nem acreditava nos meus ouvidos.
Então Fernando não era mau? Pensei num milagre. Julguei ter sido injusto. Fernando, o monstro, semelhante a Nero, receava que as crianças ferissem os pés. Esqueci as torpezas cochichadas, condenei o dicionário vermelho que tinha bandeiras e retratos. Talvez Nero, o pior dos seres, envergasse os pregos que poderiam furar os pés das crianças.
Graciliano Ramos, in Infância

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