E
quando cheguei na casa dele lá no 27, estranhei que o portão
estivesse ainda aberto, pois a tarde, fronteiriça, já avançava com
o escuro, notando, ao descer do carro, uma atmosfera precoce se
instalando entre os arbustos, me impressionando um pouco a gravidade
negra e erecta dos ciprestes, e ali ao pé da escada notei também
que a porta do terraço se encontrava escancarada, o que poderia
parecer mais um sinal, redundante, quase ostensivo, de que ele estava
à minha espera, embora o expediente servisse antes pra me lembrar
que eu, mesmo atrasada, sempre viria, incapaz de dispensar as
recompensas da visita, e eu de fato, pensativa, subi até o patamar
no alto, me detendo ali um instante mas logo entrando no terraço, me
vendo então vigiada pelo Bingo, um irado vira-lata que cumpria
exemplarmente o papel de cão do claustro, sentado na almofada da
cadeira numa rigorosa imobilidade, varando a hora fosca co’a lâmina
dos olhos, mas não fiz caso disso, além de acostumada, já tinha
dado conta da folha ali na mesa, onde pude ler, ao me aproximar, mas
sem pegar o bilhete, sequer sem me curvar, “estou no quarto”, uma
mensagem bem no estilo dele — breve, descarnada pelo cálculo,
escrita ainda, com intenção, num forjado garrancho de escolar —
mas logo esqueci a gratuidade simulada do recado e entrei na sala,
inventariando sem pressa os vestígios espalhados pelo assoalho, as
duas almofadas que pouco antes lhe teriam servido de travesseiro, o
quebra-luz de ferro ao lado, a térmica sobre a banqueta, um cinzeiro
ao alcance do braço, e mais um compêndio aberto contra o chão,
cuja lombada virada pra cima remetia diretamente ao conteúdo do
calhamaço, sem falar nas surradas sandálias de couro cru,
abandonadas displicentemente como as sandálias duma criança, cacos
isolados uns dos outros e que eu a contragosto fui juntando num
mosaico, ficando um tempo ali parada, considerando a densidade da
casa quieta, “minha cela”, segundo o comentário seco que ele fez
um dia, misturando nesse estoicismo coisas monásticas e mundanas,
até que me desloquei entre aqueles fragmentos e atravessei a peça
toda, e só foi cruzar o corredor pr’eu alcançar a porta ali do
quarto, boiando vagamente à luz tranquila duma vela: deitado de
lado, a cabeça quase tocando os joelhos recolhidos, ele dormia, não
era a primeira vez que ele fingia esse sono de menino, e nem seria a
primeira vez que me prestaria aos seus caprichos, pois fui tomada de
repente por uma virulenta vertigem de ternura, tão súbita e
insuspeitada, que eu mal continha o ímpeto de me abrir inteira e
prematura pra receber de volta aquele enorme feto.
Raduan
Nassar, in Um copo de cólera
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