domingo, 10 de maio de 2020

A chegada

E quando cheguei na casa dele lá no 27, estranhei que o portão estivesse ainda aberto, pois a tarde, fronteiriça, já avançava com o escuro, notando, ao descer do carro, uma atmosfera precoce se instalando entre os arbustos, me impressionando um pouco a gravidade negra e erecta dos ciprestes, e ali ao pé da escada notei também que a porta do terraço se encontrava escancarada, o que poderia parecer mais um sinal, redundante, quase ostensivo, de que ele estava à minha espera, embora o expediente servisse antes pra me lembrar que eu, mesmo atrasada, sempre viria, incapaz de dispensar as recompensas da visita, e eu de fato, pensativa, subi até o patamar no alto, me detendo ali um instante mas logo entrando no terraço, me vendo então vigiada pelo Bingo, um irado vira-lata que cumpria exemplarmente o papel de cão do claustro, sentado na almofada da cadeira numa rigorosa imobilidade, varando a hora fosca co’a lâmina dos olhos, mas não fiz caso disso, além de acostumada, já tinha dado conta da folha ali na mesa, onde pude ler, ao me aproximar, mas sem pegar o bilhete, sequer sem me curvar, “estou no quarto”, uma mensagem bem no estilo dele — breve, descarnada pelo cálculo, escrita ainda, com intenção, num forjado garrancho de escolar — mas logo esqueci a gratuidade simulada do recado e entrei na sala, inventariando sem pressa os vestígios espalhados pelo assoalho, as duas almofadas que pouco antes lhe teriam servido de travesseiro, o quebra-luz de ferro ao lado, a térmica sobre a banqueta, um cinzeiro ao alcance do braço, e mais um compêndio aberto contra o chão, cuja lombada virada pra cima remetia diretamente ao conteúdo do calhamaço, sem falar nas surradas sandálias de couro cru, abandonadas displicentemente como as sandálias duma criança, cacos isolados uns dos outros e que eu a contragosto fui juntando num mosaico, ficando um tempo ali parada, considerando a densidade da casa quieta, “minha cela”, segundo o comentário seco que ele fez um dia, misturando nesse estoicismo coisas monásticas e mundanas, até que me desloquei entre aqueles fragmentos e atravessei a peça toda, e só foi cruzar o corredor pr’eu alcançar a porta ali do quarto, boiando vagamente à luz tranquila duma vela: deitado de lado, a cabeça quase tocando os joelhos recolhidos, ele dormia, não era a primeira vez que ele fingia esse sono de menino, e nem seria a primeira vez que me prestaria aos seus caprichos, pois fui tomada de repente por uma virulenta vertigem de ternura, tão súbita e insuspeitada, que eu mal continha o ímpeto de me abrir inteira e prematura pra receber de volta aquele enorme feto.
Raduan Nassar, in Um copo de cólera

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