quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Lavoura Arcaica - 16

Pondo folhas vermelhas em desassossego, centenas de feiticeiros desceram em caravana do alto dos galhos, viajando com o vento, chocalhando amuletos nas suas crinas, urdindo planos escusos com urtigas auditivas, ostentando um arsenal de espinhos venenosos em conluio aberto com a natureza tida por maligna; povoaram a atmosfera de resinas e de unguentos, carregando nossos cheiros primitivos, esfregando nossos narizes obscenos com o pó dos nossos polens e o odor dos nossos sebos clandestinos, cavando nossos corpos de um apetite mórbido e funesto; sentindo duas mãos enormes debaixo dos meus passos, me recolhi na casa velha da fazenda, fiz dela o meu refúgio, o esconderijo lúdico da minha insônia e suas dores, tranquei ali, entre as páginas de um missal, minha libido mais escura; devolvendo às origens as raízes dos meus pés, me desloquei entre ratos cinzentos, explorei o silêncio dos corredores, percorri a madeira que gemia, as rachas nas paredes, janelas arriadas, o negrume da cozinha, e, inflando minhas narinas para absorver a atmosfera mais remota da família, ia revivendo os suspiros esquálidos pendendo dos caibros com as teias de aranha, a história tranquila debruçada nos parapeitos, uma história mais forte nas suas vigas; marcando o silêncio úmido daquele poço, só existia um braço de sol passando sorrateiro por uma fresta do telhado, acendendo um pequeno lume, poroso e frio, no chão do assoalho; incidindo em cada canto meu tormento sacro e profano, ia enchendo os cômodos em abandono com minhas preces, iluminando com meu fogo e minha fé as sombras esotéricas que fizeram a fama assustada da casa velha; e enquanto me subiam os gemidos subterrâneos através das tábuas, eu fui dizendo, como quem ora, ainda incendeio essa madeira, esses tijolos, essa argamassa, logo fazendo do quarto maior da casa o celeiro dos meus testículos (que terra mais fecunda, que vagidos, que rebento mais inquieto irrompendo destas sementes!), vertendo todo meu sangue nesta senda atávica, descansando em palha o meu feto renascido, embalando-o na palma, espalhando as pétalas prematuras de uma rosa branca, eu já corria na minha espera, eu disparava na embriaguez (que vinho mais lúcido no verso destas minhas pálpebras!), me pondo a espiar pelas frinchas feito bicho, acenando com minha presença dentro da casa velha através do espelho dos meus olhos, o mesmo aço intermitente e espicaçante com que no bosque, ou nos pastos, transmitíamos à distância os nossos códigos proibidos: que paixão mais pressentida, que pestilências, que gritos!
Raduan Nassar, in Lavoura Arcaica

Nenhum comentário:

Postar um comentário