quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Vivendo de papel

Assim, a escrita facilitou o surgimento de poderosas entidades ficcionais que organizaram milhões de pessoas e reconfiguraram a realidade de rios, pântanos e crocodilos. Simultaneamente, a escrita também fez com que fosse mais fácil aos humanos acreditar na existência dessas entidades ficcionais porque habituou as pessoas a experimentar a realidade por meio da meditação e de símbolos abstratos.
Caçadores-coletores passavam seus dias subindo em árvores, à procura de cogumelos, e caçando javalis e coelhos. Sua realidade diária consistia em árvores, javalis e coelhos. Camponeses trabalhavam o dia inteiro no campo, arando, colhendo, moendo milho e cuidando dos animais da fazenda. Sua realidade diária era a sensação da terra lamosa sob os pés descalços, o cheiro dos bois puxando os arados e o sabor do pão quente recém-saído do forno. Em contraste, os escribas no Egito antigo dedicavam a maior parte de seu tempo a ler, escrever e fazer cálculos. Sua realidade diária consistia em marcas de tinta em pergaminhos de papiro, que determinavam quem era o proprietário de qual campo, quanto custava um boi e qual o tributo anual que os camponeses tinham de pagar. Um escriba podia decidir a sina de uma aldeia inteira com um golpe de seu buril.
A grande maioria das pessoas permaneceu iletrada até a era moderna, mas todos os administradores importantes tinham cada vez mais acesso à realidade por meio de textos escritos. Para essa elite letrada — tanto no Egito antigo como na Europa do século XXI —, tudo o que estiver escrito num pedaço de papel é tão real quanto as árvores, os bois e os seres humanos.
Na primavera de 1940, quando os nazistas invadiram a França pelo norte, muitas pessoas da população judaica tentaram fugir do país em direção ao sul. Para cruzar a fronteira, precisavam de vistos da Espanha e de Portugal. Com outros refugiados, dezenas de milhares de judeus cercaram o consulado português em Bordeaux numa tentativa desesperada de conseguir o pedaço de papel que salvaria suas vidas. O governo português proibiu que seus cônsules na França emitissem vistos sem a aprovação prévia do Ministério do Exterior, mas o cônsul em Bordeaux, Aristides de Sousa Mendes, decidiu desobedecer à ordem, jogando pela janela trinta anos de carreira diplomática. Enquanto tanques nazistas se fechavam sobre a cidade, Sousa Mendes e sua equipe trabalhavam sem parar durante dez dias e dez noites, quase sem dormir, emitindo vistos, carimbando pedaços de papel. Sousa Mendes emitiu milhares de vistos antes de desabar de exaustão.
O governo português — com pouca vontade de aceitar refugiados — enviou agentes para escoltar o cônsul desobediente de volta para casa e o exonerou do cargo. No entanto, funcionários que pouco ligavam para as aflições de seres humanos tinham, não obstante, profunda reverência por documentos, e os vistos que Sousa Mendes emitiu desobedecendo às ordens foram respeitados por burocratas franceses, espanhóis e portugueses, fazendo desaparecer mais de 30 mil pessoas da armadilha mortal nazista. Sousa Mendes, armado com pouco mais do que um carimbo de borracha, foi responsável pela maior operação de resgate realizada por um único indivíduo durante o Holocausto.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

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