Pegamos
o vídeo da primeira versão de O talentoso Ripley, da
Patricia Highsmith, para comparar com o atual. O filme do René
Clement, O sol por testemunha, com o Alain Delon e o Maurice
Ronet, envelheceu bem, ou não envelheceu nada, ao contrário de
tantos da mesma época que a gente se arrepende de rever. (Tema para
uma conversa mole: que clássicos do cinema resistiram ao tempo e
podem ser revistos sem perigo de desilusão? Quase todos os
Hitchcocks, nem todos os Orson Welles, alguns Fords e Capras, e olhe
lá. Como os seus vinhos, os diretores da França e da Itália também
envelhecem de forma desigual: Truffaut resistiu mais do que Godard e
Resnais, os Fellinis são hoje mais tragáveis do que os Antonionis,
embora na época parecessem mais ralos, e nenhum bate um bom
Monicelli guardado na temperatura adequada. Mas este, claro, é um
palpite puramente pessoal, baseado em poucas provas.)
O
filme de Clement, com seu final moral e literalmente bem amarrado, é
até mais jeitoso, mais redondo, do que a nova versão, do Anthony
Minghella, que fica meio desconjuntada no final. Minghella foi mais
fiel ao Ripley criado por Highsmith, que tinha uma certa afeição
pelo seu anti-herói, tanto que o usou em outras histórias e nunca,
que eu saiba, lhe deu o devido castigo. O novo Ripley é mais
complexo do que o interpretado por Alain Delon, e sua relação com
Dickie mais ambígua, e não apenas porque desta vez o
homossexualismo é explícito. Há um constante jogo com espelhos, no
filme. O superficial Dickie é uma criatura de espelhos. Ripley ao
mesmo tempo o inveja e acha que pode melhorá-lo sob a superfície.
Assumir a sua personalidade é uma forma de recheá-lo. O “Dickie”
na pessoa do Ripley, ou o Ripley na pessoa do Dickie, é mais
sensível e refinado, gosta de ópera em vez de jazz, é o
filho que o pai do Dickie gostaria de ter. Mas, por mais talento que
tenha, o impostor nunca será completamente o outro. Você pode fazer
uma imitação perfeita de Chet Baker cantando “My Funny
Valentine”, mas jamais será o Chet Baker. Jamais deixará de ser o
que você vê no espelho.
O
filme Meninos não choram não tem nada a ver com O
talentoso Ripley, mas também trata da vontade de ser outro, e do
desejo tragicamente punido. Todos os casos reais (como o do/da
hermafrodita de Meninos não choram) de simulação sexual só
ficaram conhecidos porque foram revelados, o que sugere a hipótese
de que muitas figuras históricas enganaram com sucesso até o fim
(por favor, não mande sugestões de nomes) e só seriam
desmascaradas com uma autópsia. O tema da impostura é fascinante —
não é outro o prazer da literatura de espionagem, onde a vida dupla
assumida é um constante desafio à morte — e tem dado boas
histórias, verdadeiras e fictícias.
O
impostor bem-sucedido conta com a predisposição dos outros de
acreditar na sua mentira. A suposta princesa Anastásia conseguiu
convencer muita gente por muito tempo de que era uma Romanov e
sobrevivera ao massacre da família do czar, embora não falasse uma
palavra de russo. Fizeram um bom filme, Seis graus de separação,
sobre o jovem negro que se apresentou em Nova York como filho do ator
Sidney Poitier e viveu meses da generosidade de uma rica família
nova-iorquina, encantada com a possibilidade de mostrar sua
liberalidade e ainda conviver com celebridades. Depois o impostor
acionou o autor da peça que originou o filme, John Guare. Queria uma
parte dos direitos autorais, no que não deixava de ter razão. Era
co-autor da sua própria história.
Tootsie,
em que o Dustin Hoffman descobre que é melhor mulher do que era
homem, também foi bom. Mas o melhor e mais injustamente desprezado
filme sobre a impostura sexual é o Yentl, em que a Barbra
Streisand, que o escreveu, dirigiu e estrelou, se redime de todos os
seus outros exercícios de megalomania. Barbra quase sucumbindo à
feminilidade doméstica de Amy Irving, com quem se casou para manter
seu disfarce de homem, é um delicado estudo de ambiguidade sexual e
confusão de sentimentos como o cinema nunca fez igual. E, ainda por
cima, tem a música do Michel Legrand.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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