Já
agora acabo com as coisas extraordinárias. Vinha de guardar a carta
e o relógio, quando me procurou um homem magro e meão, com um
bilhete do Cotrim, convidando-me para jantar. O portador era casado
com uma irmã do Cotrim,chegara poucos dias antes do Norte,
chamava-se Damasceno,e fizera a revolução de 1831. Foi ele mesmo
que me disse isto, no espaço de cinco minutos. Saíra do Rio de
Janeiro, por desacordo com o Regente, que era um asno, pouco menos
asno do que os ministros que serviram com ele. De resto, a revolução
estava outra vez às portas. Neste ponto, conquanto trouxesse as
ideias políticas um pouco baralhadas, consegui organizar e formular
o governo de suas preferências: era um despotismo temperado, -não
por cantigas, como dizem alhures,- mas por penachos da guarda
nacional. Só não pude alcançar se ele queria o despotismo de um,
de três, de trinta ou de trezentos. Opinava por várias coisas,
entre outras, o desenvolvimento do tráfico dos africanos e a
expulsão dos ingleses. Gostava muito de teatro; logo que chegou foi
ao teatro de São Pedro, onde viu um drama soberbo, a Maria
Joana, e uma comédia muito interessante, Kettly ou a volta
à Suíça. Também gostara muito da Deperini, na Safo,
ou na Ana Bolena, não se lembrava bem. Mas a Candiani! sim,
senhor, era papa-fina. Agora queria ouvir o Ernani, que a
filha dele cantava em casa, ao piano: Ernani,
Ernani, involami... -E dizia isto levantando-se e cantarolando
a meia voz. -No Norte essas coisas chegavam como um eco. A filha
morria por ouvir todas as óperas. Tinha uma voz muito mimosa a
filha. E gosto, muito gosto. Ah! ele estava ansioso por voltar ao Rio
de Janeiro. Já havia corrido a cidade toda, com umas saudades...
Palavra! em alguns lugares teve vontade de chorar. Mas não
embarcaria mais. Enjoara muito a bordo, como todos os outros
passageiros, exceto um inglês... Que os levasse o diabo os ingleses!
Isto não ficava direito sem irem todos eles barra fora. Que é que a
Inglaterra podia fazer-nos? Se ele encontrasse algumas pessoas de boa
vontade, era obra de uma noite a expulsão dos tais godemes...
Graças a Deus, tinha patriotismo, -e batia no peito,- o que não
admirava porque era de família; descendia de um antigo capitão-mor
muito patriota. Sim, não era nenhum pé-rapado. Viesse a ocasião, e
ele havia de mostrar de que pau era a canoa... Mas fazia-se tarde, ia
dizer que eu não faltaria ao jantar, e lá me esperava para maior
palestra. -Levei-o até a porta da sala; ele parou dizendo que
simpatizava muito comigo. Quando casara, estava eu na Europa.
Conheceu meu pai, um homem às direitas, com quem dançara num
célebre baile da Praia Grande... Coisas! coisas! Falaria depois,
fazia-se tarde, tinha de ir levar a resposta ao Cotrim. Saiu;
fechei-lhe a porta...
Machado
de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas
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