sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Valparaíso: agitada como uma baleia ferida

Pequenos mundos de Valparaíso, abandonados, sem razão e sem tempo, como caixas que ficaram no fundo de uma adega sem nunca ninguém reclamar, sem se saber de onde vieram nem se sairiam dali. Talvez que nestes domínios secretos, nestas almas de Valparaíso, ficaram guardadas para sempre a soberania perdida de uma onda, a tormenta, o sal, o mar que zumbe e estremece. O mar de cada um, ameaçador e contido: um som incomunicável, um movimento solitário que passou a ser farinha e espuma dos sonhos.
Nas vidas excêntricas que descobri me surpreendeu a unidade suprema que mostravam com o porto dilacerador. Acima, pelos morros floresce a miséria em borbotões frenéticos de alcatrão e alegria. Os guindastes, os embarcadouros, o trabalho do homem cobrem a cintura da costa com uma máscara pintada pela felicidade fugidia. Outros porém não chegaram lá em cima, pelas colinas, e nem embaixo pela faina. Guardaram em seu caixão o próprio infinito e seu fragmento de mar.
E o protegiam com as armas próprias enquanto o esquecimento se aproximava deles como a névoa.

Valparaíso às vezes se agita como uma baleia ferida. Cambaleia no ar, agoniza, morre e ressuscita.
Aqui cada cidadão leva em si uma lembrança de terremoto. É uma pétala de espanto que vive aderida ao coração da cidade. Cada cidadão é um herói antes de nascer. Porque na memória do porto há esse descalabro, esse abalo da terra que treme e o ruído rouco que vem da profundeza como se uma cidade submarina e subterrânea arrojasse seus campanários enterrados a dobrarem para dizerem ao homem que tudo terminou.
Às vezes, quando já ruíram os muros e os tetos entre o pó e as chamas, entre os gritos e o silêncio, quando tudo já parecia definitivamente quieto na morte, saiu do mar como o espanto último a grande onda, a imensa mão verde que, alta e ameaçadora, sobe como uma torre de vingança varrendo a vida que ficara a seu alcance.
Tudo começa às vezes por um movimento vago e os que dormem, despertam. A alma entre sonhos se comunica com raízes entranhadas com sua profundidade terrestre. Sempre quis saber isso - e agora sei. Logo, no grande estremecimento, não há para onde apelar porque os deuses partiram, as igrejas vaidosas foram convertidas em torrões triturados.
O pavor não é o mesmo do que corre do touro iracundo, do punhal que ameaça ou da água que se engole. Este é um pavor cósmico, uma insegurança instantânea, o universo que rui e se desfaz. Enquanto isso a terra soa com um rugido surdo e com uma voz que ninguém conhecia.
O pó levantado pelas casas ao ruir pouco a pouco se aquieta. E ficamos sós com nossos mortos e com todos os mortos, sem saber por que continuamos vivos.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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