sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Doutores

Aqui na capital os doutores são indivíduos quase como os outros: vestem-se como todo mundo, falam como todo mundo, é possível a gente desprevenida passar junto a eles sem perceber nenhum sinal que os denuncie.
Têm, naturalmente, as suas honras de sabedoria oficial no consultório ou na repartição, mas findo o trabalho, escondem o anel, dobram a carta e vão para os cafés discutir fitas do Floriano, literatura, sociologia e outras habilidades. Um sujeito da rua grita para eles:
Oh Théo! Oh Moacir! Como vai, Zé Lins?
E os que jogam dados na mesa próxima ficam sem saber que um daqueles fregueses é especialista em moléstias de crianças, outro ensina física, o terceiro escreve romances.
São bem razoáveis os doutores da capital.
Os do interior são muito diferentes deles. Dogmáticos, eriçados, carrancudos.
A diferença explica-se. O bacharel, o médico ou o engenheiro que mora na cidade encontra frequentemente, dentro da sua classe ou fora dela, homens sabidos. Daí uma aproximação, uma familiaridade útil a todos.
No interior não é assim. O rapaz que salta da academia para a roça sente-se isolado. Vai com a cabeça cheia de fórmulas, algum pensamento e muito bons desejos: quer abrir uma escola, criar o horrível grêmio literário, fundar um desses pequeninos jornais onde os talentos cambembes engatinham. Mas só percebe em redor brutalidade e chatice. O pensamento e os desejos encolhem-se.
Busca fugir à brutalidade ambiente, procura alguma saliência naquela chatice toda. Nada.
Na primeira visita que faz ao prefeito ouve o sermão declamado no domingo, sermão que o vigário há dez anos profere todas as semanas, com muito fervor e pouco êxito. A mulher do prefeito defende o vigário. Mas o prefeito é livre-pensador. Não se entendem. E o visitante sai zonzo.
É atraído por umas risadas enormes. Anda meio quilômetro e afinal descobre um malandro ocupado em fazer relatório dos amores ilícitos da localidade, história complicada e antiga a que a imaginação tacanha do narrador todos os dias acrescenta um pormenor.
Afasta-se, enjoado.
Gente estúpida! Gente ruim!
Convidam-no para um casamento. Vai, constrangido. No meio da festa dão-lhe a palavra. Se é um bacharel afoito e linguarudo muito bem. Mas às vezes é agrônomo ou cirurgião-dentista e confessa honestamente que não sabe fazer discursos. Está arrasado: daí em diante não inspira nenhuma confiança.
O matuto é um ser que fala abundantemente. Dizendo as coisas mais simples, usa tiradas absurdas, circunlóquios, que não têm fim. Acha que os outros devem ser também tagarelas.
Para ele qualquer doutor tem obrigação de saber fazer tudo: requerimentos, defesas no júri, correspondências para o jornal, demarcações de terra, extração de dentes, eleições, orçamentos municipais e receitas de remédios.
Assim, o letrado oficial que vive em cidade pequena, se não quer passar por ignorante, entrega-se a ocupações numerosas. Torna-se um charlatão.
Com aprumo que faz pena, diz cinicamente: “Para matuto é isto: ensinar o que ele sabe e comer o que ele tem.”
Muita arrogância e uma frase latina: dura lex sed lex ou outra. Se o latim falha, agarra-se ao francês.
Os roceiros ficam embasbacados. E o doutor triunfa.
Depois que arranja um conceito regular, fala pouco para não se comprometer: sorri, gesticula.
É, naturalmente, o consultor da povoação onde reside. Se lhe fazem pergunta difícil, evita o obstáculo usando expressões arrevesadas.
Esquece as fórmulas que trouxe da Academia, mas os fragmentos de algumas ficam, inúteis e sempre repetidos, a adornar-lhe os restos do espírito.
Admira os personagens consagrados pelo artigo de fundo, tem horror à poesia sem rima, acata o governo e a oposição, gosta do progresso e de dois em dois anos manda fazer uma roupa de casimira e torna-se importantíssimo.
Escrevendo arrazoados, examinando doentes ou fabricando xaropes, emprega José de Alencar, Rui Barbosa, Castro Alves e Euclides da Cunha.
O matuto baba-se por ele, e quando é rico, tenta casá-lo com uma filha, que o grande desejo do tabaréu é ter um parente doutor. Busca tratá-lo familiarmente, mas isto é impossível. Julga-se muito pequeno. Dirigindo-se a ele, diz senhor; ele, em resposta, diz você.
Esse tratamento leva os homens da aldeia a sacrifícios.
Um soletra quatro livros pacientemente e faz-se rábula ou tabelião. O doutor auxilia-o.
Outro estabelece loja de fazenda, ganha dinheiro. O doutor visita-o depois do jantar e conta anedotas, com superioridade.
O negociante passa da loja para o armazém, arranca uma fortuna do couro do mandioqueiro. O doutor continua a olhá-lo de cima para baixo.
O desgraçado mete-se em política, transforma-se em prefeito e, se há Constituição, vira deputado, com o favor do governo. Diante do doutor, é sempre mesquinho. Acredita no que ele diz, deixa-se enganar candidamente. Declara, com uma espécie de orgulho:
Doutor Fulano risca e eu corto.
É esse doutor, parlapatão e ignorante, que domina as cidadezinhas do interior. Lá não há livros, e os jornais, raros, servem para se embrulhar sabão, nas bodegas.
Quando o governo conhecer bem isso, cortará muitas despesas inúteis.
E a opinião pública, pelo menos na aldeia, estará com ele.
Graciliano Ramos, in Garranchos (Jornal de Alagoas, Maceió, 11/06/1933)

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