quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Os anos e os amigos


Morte lenta ao luso infame que inventou a calçada portuguesa. Maldito d. Manuel I e sua corja de tenentes Eusébios. Quadrados de pedregulho irregular socados à mão. À mão! É claro que ia soltar, ninguém reparou que ia soltar? Branco, preto, branco, preto, as ondas do mar de Copacabana. De que me servem as ondas do mar de Copacabana? Me deem chão liso, sem protuberâncias calcárias. Mosaico estúpido. Mania de mosaico. Joga concreto em cima e aplaina. Buraco, cratera, pedra solta, bueiro-bomba. Depois dos setenta a vida se transforma numa interminável corrida de obstáculos. A queda é a maior ameaça para o idoso. “Idoso”, palavra odienta. Pior, só “terceira idade”.
A queda separa a velhice da senilidade extrema. O tombo destrói a cadeia que liga a cabeça aos pés. Adeus, corpo. Em casa, vou de corrimão em corrimão, tateio móveis e paredes, e tomo banho sentado. Da poltrona para a janela, da janela para a cama, da cama para a poltrona, da poltrona para a janela.
Olha aí, outra vez, a pedrinha traiçoeira atrás de me pegar. Um dia eu caio, hoje não.
Um dia. Um dia já foi tão longe. Cruzei com o Ribeiro na Francisco Sá, não nos víamos há tempos, ele disse para a gente se encontrar “um dia desses”. Morreu no seguinte. Que horror estava o Caju, aquele forno de Auschwitz. As tumbas pareciam derreter. Passei mal no crematório, acharam que era emoção. Não deixava de ser. Estava ótimo, o Ribeiro. Jogou vôlei até o último entardecer, saiu da praia e apagou no banho, infarto fulminante. Não tenho mais amigos vivos, o Ribeiro era o último. Eu tinha certeza de que ele ia me enterrar, corria, nadava, parou de fumar aos quarenta e se recusou a ficar brocha. A irmã acha que foi o Viagra. Comeu muita gente o Ribeiro, ele dava muita importância para isso.
Antes dele foi o Sílvio. Ou o Ciro? Não, o Ciro foi o primeiro, de câncer, antes do Neto e da mulher do Neto. O Neto não aguentava a Célia, mas morreu um ano depois dela. Vai entender. Era insuportável a Célia, depois de velha, então, virou uma mulher amarga, ranzinza, feia. O Neto não suportou a paz.
Pensar que a Célia foi uma noiva gostosíssima. Devia ter morrido ali, no auge. Se o Neto soubesse, não tinha chorado o que chorou no altar. Homem é um bicho muito bobo.
O Sílvio partiu num fevereiro de Carnaval. Ele abriu os trabalhos na sexta e emendou dez dias virado. No domingo da outra semana, deixou três vadias de prontidão no apartamento e saiu para comprar mais pó, misturou com tudo e o coração não segurou. Encontraram o Sílvio emborcado na Lapa, perto da Mem de Sá, com um lança-perfume na mão e cinco gramas de cocaína no bolso. O Sílvio bebia, normal, mas quando veio a menopausa, eu sei que é andropausa, mas não gosto de andropausa; é que nem siririca, que é um nome repugnante, melhor punheta, independente do gênero; enfim, veio a menopausa e o Sílvio despirocou. Ele conheceu umas gurias novinhas do Sul, libidinosas, traficas, e virou escravo das duas. A gente parou de se ver com as gaúchas, elas tiraram ele de circuito. Deus mandou duas diabas frígidas para acabar com a raça dele. Foi castigo. Que ano foi isso? Não sei, já foram tantos: os anos e os amigos.
Fernanda Torres, in Fim

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