domingo, 20 de janeiro de 2019

Floripes

Você não acha”, diz Floripes, “que devíamos ficar noivos? Estamos namorando há mais de dois anos, vou fazer trinta anos…”
Para mudar de assunto, pergunto:
Como é mesmo aquela história do seu nome?”
Já te contei, várias vezes.”
Mas gosto de ouvir.”
Sei que Floripes adora contar as lendas referentes ao seu nome.
Está bem, está bem. Floripes era uma moura encantada que deambulava à noite na vila de Olhão. Os pescadores acreditavam que, seduzidos pelo seu feitiço, morreriam ao tentar atravessar o mar. Mas isso é apenas um resumo duma história enorme sobre a formosa mulher vestida de branco que, durante a noite, aparecia na porta do Moinho do Sobrado. Você quer ouvir tudo?”
Uma parte, pelo menos.”
Eu não queria voltar ao assunto referente ao noivado.
Ela usava um véu sobre o rosto e uma flor nos cabelos louros”, continuou Floripes. “Apenas uma pessoa, uma única pessoa, que se chamava Julião, teria falado com ela. ‘Sou a desditosa Floripes’, disse ela, com uma expressão triste no rosto, ‘uma moura encantada. Quando a minha raça foi expulsa da província, viu-se o meu pai obrigado a partir, sem poder prevenir-me. Eu tinha um namorado, que também fugiu, e aqui fiquei sozinha, aguardando a cada momento que o meu pai me viesse buscar. Numa noite em que esperava, vi ao longe a luz de uma embarcação. A noite era de tormenta, e o barco espatifou-se de encontro aos rochedos. Não era o meu pai que ali vinha: era o meu namorado, que foi engolido pelas ondas. O meu pai soube deste funesto acontecimento e, vendo que não lhe era possível vir buscar-me, fazendo uso da magia, deixou-me aqui. Só existe uma maneira de salvar-me.’”
Floripes fez uma pausa.
Meu amor”, disse ela, “vou resumir a história, temos coisas mais importantes para conversar”.
A coisa mais importante sobre a qual ela queria falar era o noivado. Senti que suava frio.
Resumindo a história, a única maneira de salvar a moura encantada era um homem lhe dar um abraço à beira de um rio e logo feri-la no braço esquerdo. Em seguida, ele teria que acompanhá-la até a África, e lá casar-se com ela. Mas Julião tinha casamento marcado com outra mulher e recusou-se a fazer o que Floripes pedia. E assim, Floripes continuou encantada, vagando durante a noite e apavorando os pescadores de Olhão. Pronto, chega.”
Eu sabia o que viria em seguida.
Então, quando ficamos noivos?”, perguntou Floripes.
Sei que Floripes está doida para casar devido à sua idade. Ela diz que vai fazer trinta, mas na verdade vai fazer quarenta anos.
Não sei, minha querida, estou aguardando uma promoção…”
Você está aguardando essa promoção há mais de um ano”, respondeu Floripes, sem esconder sua irritação. “E você sabe que tenho recursos, meu pai, quando morreu, deixou-me uma grande quantidade de bens.”
Meu erro foi ter tido, como direi, intimidades com Floripes quando a conheci. Mas o meu desejo logo perdeu a força, expirou. E quando ela quer ir para a cama comigo, dou uma desculpa, digo para esperarmos o casamento, que é mais correto agirmos assim. Na verdade, sei que novamente deixarei de ter uma ereção, e não poderei dar a mesma explicação, como aconteceu antes, dizer que não estou me sentindo bem.
Podemos passar a nossa lua de mel em Olhão”, disse Floripes, “é uma cidade linda, fica no Algarve, uma região do sul de Portugal que tem o melhor clima da Europa”.

Neste momento estou no meu apartamento de quarto e sala, em Copacabana. Pode haver coisa pior do que morar em um apartamento de quarto e sala na avenida Nossa Senhora de Copacabana? Quando chego do trabalho, gosto de caminhar na rua, mas em Copacabana isso é impossível. As ruas vivem cheias o dia inteiro, gente fazendo compras, sujeitos vendendo bugigangas, mendigos pedindo esmolas, velhos e velhas, gente de todas as idades olhando vitrines cheias de porcarias, enquanto os carros e ônibus e caminhões que trafegam pela avenida fazem um barulho infernal e enchem os nossos pulmões de gazes cancerígenos. Eu inventei a minha promoção, não vou ser promovido. Floripes pensa que sou escriturário, mas sou contínuo. Vou ter de casar com a Floripes.
Mas li, não sei onde, que existe o chamado “casamento branco ou celibatário, sem relações sexuais”. Vou propor isso a Floripes. Como será que ela vai reagir?
Ai, meu Deus, não sei o que fazer.
Rubem Fonseca, in Amálgama

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