terça-feira, 27 de novembro de 2018

O ciclista

Eu não tenho pai, só tenho mãe. Quer dizer, eu tinha pai, mas ele largou a minha mãe quando eu tinha seis anos e foi ela quem me criou. Isso não é nada de mais, na escola pública primária onde estudei a maior parte das crianças era criada pelas mães, os pais também tinham sumido. Um dia eu achei um retrato do meu pai na gaveta da minha mãe. As mulheres são incríveis, ele batia nela, corneava ela, largou ela com filho pequeno, e a minha mãe guardava o retrato dele. Peguei o retrato, rasguei em mil pedacinhos, joguei na privada, mijei em cima e dei a descarga. Nem me lembro como era a cara dele, nem no retrato nem antes.
Quando terminei o curso primário, arranjei um emprego para ajudar a minha mãe. De bicicleta eu fazia a entrega de produtos de beleza de uma firma que não tinha loja, só anunciava pela internet. O nome era Slim Beauty, acho que é assim que se escreve, é inglês, creio que significa beleza e magreza. Mas quando eu tocava a campainha das casas para entregar os pacotes, as mulheres que abriam a porta estavam cada vez mais gordas.
Meu patrão era um sujeito legal, mais magro do que eu, careca, nariz torto, me levou com ele para escolher a bicicleta que eu ia usar. Escolhi uma com pneu bem grosso, uma bicicleta pesada, eu gostava de fazer exercício. Meu patrão, o seu Zeca, me deixava levar a bicicleta para casa.
Andando de bicicleta pela cidade a gente tem uma boa ideia do mundo. As pessoas são infelizes, as ruas são esburacadas e fedem, todo mundo anda apressado, os ônibus estão sempre cheios de gente feia e triste. Mas o pior não é isso. O pior são as pessoas más, aquelas que batem em crianças, que batem em mulheres, urinam nos cantos das ruas. Andando na minha bicicleta, vejo tudo isso e chego em casa preocupado, e minha mãe pergunta o que aconteceu, você está triste, e eu respondo não é nada, não é nada. Mas é tudo, é eu não poder ajudar ninguém, hoje mesmo vi uma velhinha ser assaltada por dois moleques e não fiz nada, fiquei olhando de longe, como se aquilo não fosse assunto meu. Será que eu vou ser igual ao meu pai, um covarde filho da puta que não teve coragem de enfrentar a trabalheira de criar uma família e fugiu? É isso? Vou ser um cagão igual a ele?
Nessa noite não dormi. No dia seguinte, depois de fazer a entrega da última encomenda para uma senhora gorda ― essas gordas sempre dão gorjeta ―, estava voltando para casa quando vi um homem barbudo batendo num garotinho. Ele dava tapas na cara com tanta força que o barulho me chamou a atenção. Acho tapa na cara, ainda mais com aquela força, pior do que soco, porque é uma coisa, além de dolorosa, humilhante, um garotinho que cresce levando tapa na cara quando adulto vai ser um pobre-diabo. Dei a volta, pedalei com força e, controlando a direção com mão firme no guidão, atropelei o filho da puta, bem entre as pernas, e ele caiu no chão gemendo, e eu ainda passei por cima da cara dele.
Como consegui tudo isso? Faço misérias com uma bicicleta. Ando em cima dela o dia inteiro, sou capaz de descer escada e até mesmo subir alguns degraus. O pneu grosso dela me ajudou semana passada a arrebentar uma cerca de madeira. Por isso arrebentar os cornos do canalha que esbofeteava o menino não foi tão difícil.
Outro dia, depois de ter feito outra entrega, a sorte sorriu para mim, como diz a minha mãe, que vê muita novela na televisão, e esse papo só pode ser de novela, a sorte sorriu para mim. Encontrei os dois moleques que haviam assaltado a velhinha seguindo outra na rua. Pedalando mais depressa passei rente a um deles e dei-lhe um soco na nuca. O puto caiu estatelado no chão. Depois de uma freada, voltei e arremeti em cima do outro dando uma pancada violenta na barriga dele com o guidão.
Fiz tudo isso me equilibrando em cima das duas rodas, como um desses caras que trabalham no circo. Para falar a verdade, meu desejo secreto, todo mundo tem um desejo secreto, meu desejo secreto é trabalhar num circo dando voltas de bicicleta dentro do Globo da Morte. Sim, eu sei que isso é feito com uma motocicleta, mas eu acho que posso fazer o mesmo na minha bicicleta.
A velhinha nem viu que eu a salvei daqueles dois sacripantas ― quem fala assim também é a minha mãe, aprendeu isso quando trabalhou na casa de uma senhora portuguesa. Minha mãe me explicou que sacripanta é uma pessoa capaz das mais abjetas ações e de todas as indignidades e violências. A velhinha continuou andando pela rua com o seu passinho miúdo, segurando a bolsa com as duas mãos.
Não sei o que deu em mim. Uma crise de megalomania? Como disse o meu patrão ao afirmar que vai ser o maior fabricante de produtos de beleza do Brasil, e eu perguntei se ia demorar para isso acontecer, e ele respondeu, esquece, meu filho, não acredite nisso, é uma crise de megalomania, e quando perguntei o que era megalomania, ele disse que era mania de grandeza, coisa de maluco.
Eu estou ficando maluco? Todo dia fico procurando em cima da minha bicicleta alguma pessoa má para punir. Os maus devem ser punidos, e não digo isso como um coroinha falando na igreja, mesmo porque eu nunca vou à igreja, nem digo isso como se fosse um tira, nem digo isso porque o meu pai abandonou a família quando eu tinha seis anos, nem digo isso porque minha mãe está desdentada e eu vou pelo mesmo caminho, eu digo isso porque odeio gente má. E sei quando a pessoa é má só de olhar para a cara dela.
Hoje à noitinha passei por um homem na rua carregando uma saca e pelo perfil notei que ele era mau. Dei a volta para ver a cara dele de frente. Sim, ele era mau, muito mau. Adiantei a minha bicicleta, retornei e fiquei parado de frente para ele. Ficamos olhando um para o outro, ele um tanto ou quanto surpreso, com aquele menino olhando-o fixamente. Então comecei a pedalar furiosamente dirigindo minha bicicleta para cima dele, o cara meteu a mão na saca, tirou um revólver, mas, nesse momento, eu acertei os colhões dele com os pneus e em seguida atingi a barriga dele com o guidão. Ele caiu desmaiado. Saltei da bicicleta e peguei o revólver, que estava no chão. Dei dois tiros para o alto. Eu não tenho telefone celular e achei que aquela era uma boa maneira de chamar a polícia. Pouco depois chegou um carro da polícia e um carro de reportagem de um jornal. Expliquei que o sujeito estava andando com um revólver na mão e que eu decidira fazer alguma coisa, pois ele certamente era um bandido. Claro que eu disse uma pequena mentira, essa do revólver na mão, mas eu não podia dizer que sabia pela cara quais as pessoas que eram más.
O sujeito era um bandido procurado pela polícia, e o jornal publicou uma foto em que eu aparecia montado na minha bicicleta e embaixo escrito: “O jovem herói.”
Não estou interessado em ser o jovem herói. Estou interessado em punir as pessoas más e isso eu pretendo continuar fazendo. A menos que seja convidado para fazer no circo o Globo da Morte na minha bicicleta.
Rubem Fonseca, in Amálgama

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