quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Isto é o que você deve fazer

Isto é o que você deve fazer; ame a terra e o sol e os animais, despreze os ricos, dê esmolas a todos que pedirem, defenda os inocentes e os loucos…”
Walt Whitman

Ele está matando os gatos aqui no parque. Joga-os dentro do lago e fica olhando os animais se afogarem. Creio que ele, o matador de gatos, está sorridente, mas não tenho certeza, não consigo ver seu rosto. Qual será o prazer de matar um gato? Quem mata um gato é capaz de matar uma pessoa?
Eu não mato nem barata, claro que sinto certo nojo dela, mas prefiro afugentá-la ― ela foge, é medrosa ― do que matá-la, da maneira que todos fazem, esmigalhando-a com os pés, os pés calçados, pois com os pés descalços os matadores de barata não têm coragem.
Vigio esse sujeito há algum tempo. Ele chega cedo, quando o parque ainda está vazio, e se aproxima dos gatos com sardinhas na mão; os gatos estão famintos, a direção do parque, que devia alimentá-los, não o faz. Quando um gato, sentindo o aroma daquele manjar, se aproxima, o sujeito joga um pano sobre ele, envolve-o, imobilizando-o, vai até a beira do lago e o atira lá dentro. Percebo com nitidez que ele, o matador de gatos, está sorridente, um sorriso de prazer de quem satisfez uma aspiração, algo mais que um desejo.
O que eu devo fazer? Apenas observar? Aproximei-me do indivíduo logo após o gato sumir nas águas do lago e perguntei se ele me permitia uma pergunta.
Claro, respondeu.
O senhor também mata cachorros?
Ele parou pensativo. Estaria surpreso com a minha pergunta? Ou tentava se lembrar se já matara algum cão?
Cachorro, respondeu, só mato se for um desses lulus. Odeio esses cachorrinhos de madame, com fitinha na cabeça. Mas até agora só matei três. Não foi interessante. Matei com bola. Sabe o que é bola, não? Uma porção de carne envenenada. Esses lulus vivem comendo ração importada que a madame compra pra eles, e a minha bola é de filé-mignon, e os bichos ficam enlouquecidos e nem sentem o gosto do veneno. Uso um produto difícil de encontrar, conhecido como Composto 1080, um raticida altamente tóxico que não tem antídoto. As madames levam os bichos ao veterinário e ele não pode fazer porra nenhuma. Desculpe-me esta palavra soez, detesto nomes grosseiros.
Ele matava cães e gatos, mas não dizia palavras torpes.
Amanhã ele vai matar gatos novamente.
O que eu devo fazer? Apenas observar?
Não mato barata.
Mas aquele sujeito era pior que uma barata. Esmigalhar com os pés não dá, tenho que descobrir a maneira correta.
Rubem Fonseca, in Amálgama

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