domingo, 11 de novembro de 2018

A letra B


Em 1725, Johann Sebastian Bach se preparava para compor sua cantata número 1 em si bemol maior, na igreja luterana de São Tomás, em Leipzig, onde mantinha uso exclusivo e solitário do grande órgão adquirido pelo arcebispo de Leipzig, a seu pedido, dezoito anos antes, diretamente de um fabricante que por ali passara e comentara a existência do órgão, quando ocorreu um grave problema. Bach já sofria de cegueira quase completa, que uns diziam provir de diabetes mal tratada, mas outros mais maldosos garantiam ser efeito do fato de ele ter copiado as partituras de seu irmão 21 anos antes, no escuro. Mas isso pouco se comentava, porque todos testemunhavam a descida corpórea de anjos quando Johann se sentava ao órgão para tocar aos domingos e também, até mesmo, a presença de um pequeno anjo loiro quando ele havia começado a ensaiar uma nova fuga. O problema foi que Bach percebeu que uma das notas de uma frase musical da cantata teimava em não se completar. Sempre que ele começava a tocar a frase que martelava em sua cabeça, o órgão se recusava a soar aquela nota. Ele a tocava, mas, de alguma forma misteriosa, o som emitido era diferente. Da mesma maneira, a própria concepção da frase em sua imaginação e a correspondência mental da melodia estacavam exatamente naquela nota. Tratava-se de um si bemol, disso ele sabia. Pensou em modificar a nota, mas não era possível, pois a nota teimava em ser tocada e era certamente a mais exata para a cantata como Bach a concebera, ainda na noite anterior, durante mais um dos acessos de insônia que vinha tendo havia algumas semanas. O músico revirou o órgão por dentro, sentou-se, esperou, mas tudo continuava intocado, e o instrumento guardava-se com uma perfeição cada vez maior, quanto mais era tocado pelo emissário único dos anjos da esfera intermediária. Esses anjos intermediários, que habitavam uma porção, como diz o nome, mediana das esferas celestes, eram responsáveis pelas coisas terrenas que permitiam aos homens conhecer brevemente alguns enigmas do céu. Não pertenciam às camadas superiores, responsáveis pelos assuntos propriamente celestes, nem às totalmente inferiores, que se encarregavam de problemas estritamente mundanos, como doenças e afogamentos. Contrariado e ansioso, pois a cantata deveria ser apresentada dali a dois dias, quando a igreja contaria com a presença do arcebispo de Leipzig em pessoa, Bach tornou a sua casa, onde nada parecia acalmá-lo. Teimava em repetir aquele si bemol que, por sua vez, resistia a soar a contento. Em sua pequena biblioteca, com a ajuda do filho mais novo, Bach alcançou um volume antigo, cópia apócrifa de um manuscrito cujo original se encontrava guardado na Biblioteca Central do Vaticano. Tratava-se de uma reprodução dos originais de Guido d’Arezzo, escritos ainda no século X, sobre a marcação das notas musicais. Mais uma vez, depois de tantas que já havia folheado aquelas páginas, o músico se debruçou sobre os nomes das notas. Releu o Hino a São João Batista, de onde Guido havia extraído os nomes das notas ut, ré, mi, fá, sol e lá. Ut queant laxis — Para que nós, teus servos; Resonare fibris — possamos elogiar claramente; Mira gestorum — a força dos teus atos; Famuli tuorum — e teus milagres; Solve polluti — absolve a impureza; Labii reatum — de nossos lábios. Como em todas as outras vezes, o músico se emocionava com a precisão das palavras que praticamente justificavam a existência da música; um elogio claro à força e ao milagre de Deus e a mais perfeita absolvição de nossas impurezas. Rezou a Guido e, temerariamente, também a Deus e a outros anjos de sua predileção, a fim de que o iluminassem para que a nota teimosa se decidisse por soar harmoniosamente. Pela primeira vez, Johann percebeu, então, e para sua incompreensível surpresa, que, nas notações musicais de Guido, faltava justamente a correspondência para a nota si. Como isso poderia ter lhe escapado? Percebeu que, caso encontrasse a origem pia da nota, encontraria também a chave para sua recusa em soar. Passou o resto do dia revirando insatisfatoriamente seus outros manuscritos e ainda brigou com seu filho Wilhelm, que dizia, acintosamente, saber a origem oculta da nota. À noite, entre sonhos fragmentados e sempre afetados pela vigília, entreviu uma resposta. As letras iniciais de Sancte Iohannes formavam o si, a nota que faltava. Foi direto ao cravo de seu quarto e acreditou que, finalmente, a nota soaria a contento. Não soou. Voltou à igreja cabisbaixo, e já cruzava o átrio quando Wilhelm surgiu ofegante, insistindo em lhe fornecer a resposta. Pediu-lhe que retomasse a notação grega, ainda proveniente da teoria pitagórica, ligada às esferas celestes e suas correspondências terrestres. Bach negou com veemência aquele descaramento pagão e mandou Wilhelm de volta para casa. Entretanto, ao voltar ao órgão, diante de mais uma recusa renitente da nota, sacou de uma pena que mantinha guardada no bolso de seu casaco e experimentou anotá-la segundo as regras do grego antigo. Desenhou: uma reta vertical do lado esquerdo, acoplada a dois semicírculos que a preenchiam lateralmente. Não conhecia o significado desse símbolo, mas sabia configurá-lo. Desenhou e imediatamente voltou ao órgão. A nota soou clara como se nunca tivesse resistido. O músico, apesar da heresia e diante do pouco tempo que restava para a apresentação, resolveu adotar a notação e, no momento de dar o nome à cantata, ainda ousou nomeá-la em homenagem àquela nota profana, que se intrometera na melodia contrapontística da fé cristã. Chamou-a Cantata em si bemol maior, ou, segundo sua própria anotação, Cantata em B bemol maior. Assim, com uma intervenção pitagórica das esferas cósmicas em meio à devoção piedosa das notas cristãs, nasceu a letra B, que se mantém até os dias de hoje em coisas e seres religiosos e profanos, como as bétulas, os bichos e as bolas.
Noemi Jaffe, in A verdadeira história do alfabeto

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