domingo, 11 de novembro de 2018

A Máquina do tempo

O pintor Francisco de Goya (1819-1823) pintou um quadro sinistro que representa o deus Cronos devorando um dos seus filhos. A brutalidade plástica e a verdade da tela estão em que ela nos confronta com o nosso destino: à medida que o tempo passa, a vida se vai.
O tempo faz o vivido desaparecer no esquecimento. Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa, descreveu essa tristeza de sentir a vida escorrendo para o passado num poema: “O tempo passa. Não nos diz nada. Envelhecemos. Saibamos, quase maliciosos, sentir-nos ir. Não vale a pena fazer um gesto. Não se resiste ao deus atroz que os próprios filhos devora sempre”.
Por isso eu escrevo, para lutar contra o tempo. A escritura e a leitura fazem os mortos ressuscitar. A escritura e a leitura fazem o passado acontecer de novo. Por isso, ao ler o que aconteceu e não mais existe, nós rimos e choramos como se aquilo que aconteceu estivesse acontecendo de novo. E foi isso que aconteceu comigo. Envelhecendo, tive medo que o meu passado se perdesse.
Resolvi, então, escrever o meu passado, um passado feliz que o tempo me havia roubado, para oferecê-lo às minhas netas. Queria que, quando eu morresse, ele continuasse vivo na memória delas. Escrevi um livro contando a vida que vivi quando menino, na roça. Descrevi a casa velha, pintada de branco. Contei sobre os riachos e as árvores, sobre as noites silenciosas, sobre os ruídos dos bichos na mata, sobre os céus escuros iluminados por milhares de estrelas, sobre o fogão de lenha e sobre a luz das lamparinas iluminando a sala. E sobre algo impensável para elas: não havia eletricidade. Não havia geladeira. As comidas eram guardadas em armários de tela chamados guarda-comida.
Publicado o livro, elas não demonstraram o menor interesse naquilo que eu contava porque o mundo em que eu vivera e amara lhes era estranho. Quem se interessou foram os velhos porque aquele era um mundo que fora deles.
Passado algum tempo, recebi um e-mail em inglês, uma mulher... Desculpava-se pelo inglês. Era uma imigrante egípcia. Entendia bem o português, lia os meus livros e gostava deles. Escrevia-me para me dizer que, no meu livro para as minhas netas, eu usara uma palavra que a apunhalara...
Uma única palavra com o poder de apunhalar! Que palavra poderosa poderia ter sido essa?
Fui apunhalada pelo ‘guarda-comida’”, ela disse. “Eu havia me esquecido de que essa palavra existia. O tempo a mergulhara no esquecimento. Mas quando a li o meu passado voltou, instantaneamente. Instantaneamente eu me vi menina de seis anos na cozinha da minha casa no Cairo, sessenta anos antes. Lá havia um ‘guarda-comida’.” E ela disse o nome em francês: “garde-manger”. “A palavra anulou o espaço: atravessei o Atlântico... A palavra anulou o tempo: o passado ficou presente, ressuscitou do esquecimento...”
Aprendi então que máquinas do tempo existem. Elas se chamam “palavras”.
Podemos, então, pintar uma tela que é o inverso da tela que Goya pintou: a vida devorando o tempo…
Rubem Alves, in Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo

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