domingo, 11 de novembro de 2018

...De umas coisas que eu não posso acreditar...

Nas chamadas férias grandes, saturado de provas e de padres, eu ia pra Paquetá colecionar mulher. Dito assim, reconheço, fica um tanto pretensioso. Porque eu não apanhava ninguém. Elas queriam rapazes “mais velhos”. Mas eu continuava minha coleção com método e carinho.
Eis o método: montava na Amélia, minha bicicleta, e percorria, incansável, praias, pracinhas, ruas esquecidas, barrancos do outro lado da Ilha, o vôlei no quintal da Fulana, o violão na varanda da Beltrana, e me intrujava em pic-nics, fazia a ronda em lojas e lanchonetes, esperava barcas apinhadas, tocaiava o portão do Iate, voltava pro movimento da Ponte - até que o apito da última barca, sumindo por trás da Ilha dos Lobos, selava o fim de mais um dia de intensas pesquisas. Ayôu, Amélia! Ia pros Coqueiros, sentava na areia embaixo daquelas estrelas todas e ficava meio sufocado (muito tempo depois, li em “Chance” que um personagem do Conrad sentia algo parecido). Ficava olhando o ponto imaginário onde, lá longe, além das luzes dos petroleiros, o ar e a noite eram uma coisa só. Aquela escuridão ferida de estrelas cúmplices, a ligação total entre as duas sombras primordiais, a sensação de que podia ser sugado para dentro daqueles princípios, mamoite, tudo aquilo me deixava muito louco. Aí, quase numa de horror, eu pedalava a mil pra casa, me metia sorrateiramente na dragoflex e começava a relaxar...
Tirava um papel com o mapa do tesouro do bolso do blusão e conferia as joias (poxa, Abi, foi sem querer...) do dia: a moreninha de “testa alta” visível sob o short branco de Alambari Luz, a doméstica (ou seria babá, Henrique) de maiô verde na Rua do Cemitério, a bunda balzaquiana que chegou na barca das sete, a lourinha de bruços na bóia de pneu de avião na Praia da Guarda... No fim do inventário, memória, coberta e alma jaziam devidamente lavradas no sonho acordado.
Uma noite, numa seresta, as musas se fundiram numa só.
- Como é o teu nome?
- Maria.
- Você é linda!
- São seus olhos...
Começamos a namorar, ela muito quieta, eu muito apaixonado. Várias serestas depois, fomos andando devagarinho pros lados da Praia das Aguas e transamos de um jeito sem jeito, impetuosos, mas cheios de cuidado, amor de crianças. Com a cabeça dela no peito, olhei tranquilo a profusão de estrelas e pensei: ôi, minhas camaradas. O mar e a noite continuavam engalfinhados na mais pura sacanagem.
No fim de fevereiro, Maria e as férias terminaram.
Mas fevereiro é um mês danado pra voltar, e num Carnaval aceitei o convite de um amigo pra um pagode discreto: cervejinha, papo, ver as escolas na televisão, uma sinuca pra quem tivesse a fim. Meu amigo, que não tinha nenhuma intenção de ser também amigo da onça, queria que eu conhecesse umas pessoas, tudo gente fina, vizinhos do mesmo condomínio, numa praia pros lados de Cabo Frio. Tomei umas caipirinhas pra aquecer os motores e fui torcer pelo Salgueiro em reduto de mangueirense. Cheguei, tal-e-coisa, muita animação, um ou dois já de porre, prazer, oba, cumequié, salve, e...
- Oi, Maria! Há quanto tempo...
- É. Como vai?
- Vou indo. Sabe que escrevi sobre Paquetá um dia desses e me lembrei…
- Ah, deixa eu te apresentar: esse é o Carlos, meu marido.
- Fala, Carlos...
- Então você é que é o tal!
- O tal?
- Maria sabe todas as suas músicas...
- Pára com isso, Carlos. O Aldir sempre foi muito tímido.
Sorriu daquele jeito quieto e intenso. Não pude evitar:
- E você continua maravilhosa.
- São seus olhos...
Depois que ela foi embora, bebi de cair. Semana passada, entrei no Tangará pra uma batida. Quando pedia a terceira, uma voz amargurada me perguntou se eu tava bebendo pra esquecer alguém.
- Oi, Maria.
Estava um pouco alta, tensa, envelhecida. Eu tentei dizer algumas coisas gentis, mas devem ter soado vazias porque Maria procurava meus olhos e não dizia nada. Me deu um beije repentino no rosto e fugiu pela Álvaro Alvim.
Tomei um táxi pra Zona Sul e fiquei curtindo um chope à beira-mar. As mesmas estrelas e os dois grandes sacanas, lá longe, abraçados na escuridão. Levantei o copo e brindei a você, Maria. Você, quieta e intensa, continua a mesma. São meus olhos, Maria, meus olhos é que estão envelhecendo.
Aldir Blanc, in Brasil passado a sujo

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