sexta-feira, 22 de junho de 2018

As pensões

Depois de muitos anos de liceu, em que tropecei sempre no mês de dezembro com o exame de matemática, fiquei exteriormente pronto para enfrentar a universidade, em Santiago do Chile. Digo exteriormente porque, por dentro, minha cabeça estava cheia de livros, de sonhos e de poemas que zumbiam em mim como abelhas.
Provido de um baú de folha-de-flandres, com o indispensável traje negro de poeta, delgadíssimo e afilado como uma faca, entrei na terceira classe do trem noturno que levava um dia e uma noite intermináveis para chegar a Santiago.
Este comprido trem que atravessava zonas e climas diferentes, e no qual viajei tantas vezes, guarda para mim ainda um encanto estranho. Camponeses de ponchos molhados e cestos com galinhas, taciturnos mapuches, toda uma vida se desenvolvia no vagão de terceira. Eram muitos os que viajavam sem pagar, debaixo dos bancos. Ao surgir o inspetor, produzia-se uma metamorfose. Muitos desapareciam e alguns se ocultavam debaixo de um poncho sobre o qual logo dois passageiros fingiam jogar canas, sem que esta mesa improvisada chamasse a atenção do inspetor.
Entretanto o trem passava dos campos com carvalhos e araucárias e das casas de madeira molhada aos álamos do centro do Chile, às empoeiradas construções de adobe. Muitas vezes fiz aquela viagem de ida e volta entre a capital e a província mas sempre me senti oprimido quando saía dos grandes bosques, da madeira maternal. As casas de adobe e as cidades com passado pareciam-me cheias de teias de aranha e de silêncio. Até agora continuo sendo um poeta do céu aberto e da selva fria que perdi então.
Vinha recomendado a uma pensão da rua Maruri, 513. Não esqueço este número de maneira nenhuma. Esqueço todas as datas e até os anos, mas este número 513 ficou galvanizado na minha cabeça, onde o meti há tantos anos com medo de não chegar nunca a essa pensão e me extraviar na capital grandiosa e desconhecida. Na rua mencionada me sentava na sacada para olhar a agonia de cada tarde, o céu embandeirado de verde e carmim, a desolação dos telhados suburbanos ameaçados pelo incêndio do céu.
A vida daqueles anos na pensão de estudantes era de fome completa. Escrevi muito mais do que até então mas comi muito menos. Alguns dos poetas que conheci naqueles dias sucumbiram por causa das dietas rigorosas da pobreza. Entre estes recordo um poeta da minha idade, porém muito mais alto e mais desconjuntado do que eu, cuja lírica sutil estava cheia de essência e impregnava todo lugar onde era ouvida. Chamava-se Romeo Murga.
Com Romeo Murga fomos ler nossas poesias na cidade de San Bernardo, perto da capital. Antes que aparecêssemos no cenário, tudo se havia desenvolvido num ambiente de grande festa: a rainha dos Jogos Florais com sua corte branca e loura, os discursos das autoridades da cidade e os conjuntos vagamente musicais daquele lugar. Mas quando entrei e comecei a recitar meus versos com a voz mais queixosa do mundo, tudo mudou: o povo tossia, lançava piadas e se divertia muitíssimo com minha poesia melancólica. Vendo esta reação dos bárbaros, apressei minha leitura e dei o lugar a meu companheiro Romeo Murga. Foi memorável. Ao ver entrar aquele Quixote de dois metros de altura, de roupa escura e surrada, começar sua leitura com voz ainda mais queixosa que a minha, o público em peso não pôde conter sua indignação e começou a gritar: Poetas famintos! Fora! Não estraguem a festa!
Da pensão da rua Maruri saí como um molusco que sai de sua concha. Despedi-me daquela carapaça para conhecer o mar, isto é, o mundo. O mar desconhecido eram as ruas de Santiago, apenas entrevistas enquanto caminhava entre a velha escola universitária e o quarto ermo da pensão.
Eu sabia que minhas fomes anteriores aumentariam com esta aventura. As senhoras da pensão, remotamente ligadas à minha província, me ajudaram algumas vezes com algumas batatas ou cebolas misericordiosas. Mas não havia mais remédio: a vida, o amor, a glória, a emancipação me chamavam. Pelo menos assim me parecia.
O primeiro alojamento independente que tive foi alugado na rua Argüelles, perto do Instituto de Pedagogia. Numa janela dessa rua cinzenta aparecia um letreiro: “Alugam-se quartos”. O dono da casa ocupava os quartos da frente. Era um homem de cabelos grisalhos, de aparência nobre e de olhos que me pareceram estranhos. Era loquaz e eloqüente. Ganhava a vida como cabeleireiro de senhoras, ocupação a que ele não dava importância. Suas preocupações, segundo me disse, diziam respeito mais ao mundo invisível, ao além.
Tirei meus livros e minhas poucas roupas da maleta e do baú que viajavam comigo desde Temuco e me estendi na cama para ler e dormir, orgulhoso de minha independência e de minha preguiça.
A casa não tinha pátio mas tinha um alpendre para o qual davam vários quartos fechados. Explorando os desvãos da mansão solitária, na manhã do dia seguinte, observei que em todas as paredes e ainda na privada surgiam letreiros que diziam mais ou menos a mesma coisa: “Conforma-te. Não podes te comunicar conosco. Estás morta.” Advertências inquietantes que se prodigalizavam em cada quarto, na sala de jantar, nos corredores, nas saletas.
Era um desses invernos frios de Santiago do Chile. A herança colonial da Espanha deixou a meu país o desconforto e o menosprezo até dos rigores naturais. (Cinquenta anos depois do que estou contando, Ilia Ehrenburg me dizia que nunca sentiu tanto frio como no Chile, ele que chegava das mas nevadas de Moscou.) Aquele inverno havia recoberto os vidros. As árvores da rua tiritavam de frio. Os cavalos das velhas carruagens deitavam vapor pelos focinhos. Era o pior momento para se viver naquela casa, entre obscuras insinuações do além.
O dono da casa, coiffeur pour dames e ocultista, explicou com serenidade, enquanto me olhava profundamente com seus olhos de louco:
- Minha mulher, Charito, morreu há quatro meses. Este momento é muito difícil para os mortos, que continuam frequentando os mesmos lugares em que viviam. Não os vemos mas eles não se dão conta de que não os vemos. É preciso fazê-los saber para que não nos creiam indiferentes e para que não sofram com isto. Por isso coloquei estes cartazes para Charito que lhe tornarão mais fácil compreender seu estado atual de defunta.
Mas o homem de cabeça grisalha me julgava talvez demasiado vivo. Começou a vigiar minhas entradas e saídas, a regulamentar minhas visitas femininas, a espionar meus livros e minha correspondência. Entrasse eu intempestivamente no quarto e deparava com o ocultista explorando meu mobiliário exíguo, fiscalizando meus pobres pertences.
Tive que procurar em pleno inverno, levando tombos pelas ruas hostis, um novo alojamento onde albergar minha independência ameaçada. Encontrei-o a poucos metros dali em uma lavanderia. Saltava aos olhos que aqui a proprietária não tinha nada a ver com o além. Através de pátios frios, com fontes de água estagnada que o musgo aquático recobria de espessas alfombras verdes, alongavam-se jardins abandonados. No fundo havia um quarto de pé-direito muito alto, com bandeiras sobre a trave das altas portas, o que aumentava a meus olhos a distância entre o chão e o teto. Nessa casa e nesse quarto fiquei.
Tínhamos, os poetas estudantis, uma vida extravagante. Defendi meus hábitos provincianos trabalhando em meu quarto, escrevendo vários poemas por dia e tomando intermináveis chávenas de chá que eu mesmo preparava. Porém, fora do quarto e de minha rua, a turbulência da vida dos escritores da época tinha um fascínio especial. Estes não frequentavam o café mas sim as cervejarias e as tabernas. As conversas e os versos iam e vinham até de madrugada. Meus estudos se ressentiam com isso.
A empresa de estrada de ferro dava a meu pai, para suas tarefas a céu aberto, uma capa de grosso pano cinzento que ele nunca usou. Destinei esta capa à poesia. Três ou quatro poetas começaram a usar também capas semelhantes à minha que mudava de mão em mão. Esta peça provocava a fúria da boa gente e da não tão boa. Era a época do tango que chegava ao Chile não só com seus compassos e sua tijera rasgada, seus acordeões e seu ritmo, mas também com um cortejo de vadios que invadiram a vida noturna e os lugares em que nos reuníamos. Esta gente da malandragem, bailarinos e valentões, criava conflitos contra nossas capas e nossas vidas. Nós, os poetas, reagíamos com firmeza.
Por aqueles dias fiz amizade inesperada com uma viúva indelével, de imensos olhos azuis que se velavam ternamente na lembrança de seu recém-falecido marido. Este havia sido um jovem novelista, célebre por seu belo porte. Juntos faziam um par memorável, ela com sua cabeleira cor de trigo, o corpo perfeito e os olhos ultramarinos, e ele muito alto e atlético. O novelista havia sido aniquilado por uma tuberculose das que chamamos galopante. Depois pensei que a loura companheira teve também sua participação de Vênus galopante e que a época pré-penicilínica, mais a loura fogosa, levaram deste mundo o marido monumental num par de meses.
A bela viúva não havia se despojado ainda para mim de seus vestidos de luto, sedas negras e violetas, que a faziam parecer uma fruta nevada envolta numa aura de dor. Essa aura deslizou uma tarde no meu quarto, ao fundo da lavanderia, e pude tocar e percorrer inteiramente a fruta de neve ardente. Ia consumar-se o arrebatamento natural quando vi que, debaixo de meus olhos, ela cerrava os seus e exclamava: “Oh, Roberto, Roberto!”, suspirando ou soluçando. (Pareceu-me um ato litúrgico. A vestal invocava o deus desaparecido antes de entregar-se a um novo rito.) No entanto, e apesar de minha juventude abandonada, esta viúva me pareceu excessiva. Suas invocações se faziam cada vez mais urgentes e seu coração fogoso me conduzia lentamente a um aniquilamento prematuro. O amor, em tais doses, está em desacordo com a desnutrição. E minha desnutrição se tornava cada dia mais dramática.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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