quinta-feira, 29 de março de 2018

Não quero novidades

Sempre fui louco por jardins. Uns acham que eu não acredito em Deus. Como não acreditar em Deus se há jardins? Um jardim é a face visível de Deus. E essa face me basta. Não tenho necessidade de ir olhar atrás das estrelas... Escrevi inúmeros textos sobre jardins. Num jardim estou no paraíso. Mas, que foi que fiz com o meu jardim? Abandonei. A caixa das abelhinhas apodreceu, caiu a tampa e eu não fiz nada. Cresceu o mato, eu não fiz nada. Da fonte tirei os peixes, coitados... De um lugar de prazer, onde se assentar em abençoada vadiação contemplativa, meu jardim virou um lugar de passagem. Abandonei o meu amigo, por causa do dever. Para o inferno com o dever! Vou mesmo é cuidar do meu jardim. Por prazer meu. E pela alegria das minhas netas. Vou reformar a fonte, vou fazer um balanço (que os paulistas insistem em chamar de balança...), vou reformar o gramado, vou refazer a casa das abelhinhas, vou fazer uma cobertura para as orquídeas. E mais, vou fazer uma “casinha de bruxa”, cheia de brinquedos, para as minhas netas, a Mariana, a Camila, a Ana Carolina, a Rafaela e a Bruna... Quero brincar com elas. Em breve elas terão crescido e não mais terei netas com quem brincar. “Mas o melhor do mundo são as crianças...”
Vou voltar a tocar piano – coisas fáceis: a “Fantasia”, de Mozart, a “Träumerai”, de Schumann, o Improviso op. 90, n. 4, de Schubert, o prelúdio da “Gota d’água”, de Chopin, alguns adágios de sonatas de Beethoven.
Quero ouvir músicas: aquelas que fazem parte da minha alma. Pois a alma, no seu lugar mais fundo, está cheia de música. E, sem precisar me desculpar pelo meu gosto, digo que amo música erudita. Música erudita é aquela que nos faz comungar com a eternidade. As outras são bonitas e gostosas – mas são coisa do tempo.
Quero reler alguns livros. Vou relê-los porque é sempre uma alegria caminhar por caminhos conhecidos e esquecidos. É como se fosse pela primeira vez.
Não quero novidades. Não vou comprar apartamentos ou terrenos. Não quero viajar por lugares que desconheço. Eliot: “E ao final de nossas longas explorações chegaremos finalmente ao lugar de onde partimos e o conheceremos então pela primeira vez...”. É isso. Voltar às minhas origens, às coisas de Minas que tanto amo... a cozinha, os jardins de trevo, a malva, as romãs e os manacás, as montanhas, os riachinhos, as caminhadas...
Há coisas que só poderei gozar em solidão. Ninguém é obrigado a gostar das músicas que amo. Entrando nesse mundo, gozarei de abençoada solidão. Lugar bom para se ouvir música assim é guiando o carro, sozinho, sem precisar conversar.
Mas quero meus amigos. Não do jeito do Roberto Carlos, que queria ter um milhão de amigos. Não é possível ter um milhão de amigos. Quero meus poucos amigos. Amigos: pessoas em cuja presença não é preciso falar...
Estou tentando, estou começando. Espero conseguir...”
Rubem Alves, in Variações sobre o prazer

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