quarta-feira, 21 de março de 2018

Conhece-te a ti mesmo

Se a felicidade se baseia em ter sensações agradáveis, para sermos mais felizes precisamos reformular nosso sistema bioquímico. Se a felicidade se baseia em sentir que a vida tem sentido, para sermos mais felizes precisamos nos iludir de maneira mais eficaz. Existe uma terceira alternativa?
Ambas as visões anteriores partem do pressuposto de que a felicidade é uma espécie de sensação subjetiva (de prazer ou de sentido) e, para avaliar a felicidade das pessoas, tudo que precisamos fazer é lhes perguntar como elas se sentem. Para muitos de nós, isso parece lógico porque a religião dominante da nossa era é o liberalismo. O liberalismo santifica as sensações subjetivas dos indivíduos. Vê essas sensações como fonte suprema de autoridade. O que é bom e o que é mau, o que é bonito e o que é feio, o que tem de ser e o que não tem de ser, tudo isso é determinado por aquilo que cada um de nós sente.
A política liberal se baseia na ideia de que os eleitores sabem o que é melhor e não há necessidade de um Grande Irmão para nos dizer o que é bom para nós. A economia liberal se baseia na ideia de que o cliente sempre tem razão. A arte liberal declara que a beleza está nos olhos de quem vê. Os estudantes em escolas e universidades liberais são ensinados a pensarem por si mesmos. “Just do it!”, nos encorajam os comerciais. Filmes de ação, dramas de teatro, telenovelas, romances e canções de sucesso pegajosas nos doutrinam constantemente: “seja verdadeiro consigo mesmo”, “ouça a si mesmo”, “siga seu coração”. Jean-Jacques Rousseau afirmou sua visão de maneira mais clássica: “Tudo o que sinto ser bom, é bom; tudo o que sinto ser mau, é mau”.
As pessoas que foram criadas desde a infância à base de uma dieta de tais slogans tendem a acreditar que a felicidade é uma sensação subjetiva e que cada indivíduo sabe melhor do que ninguém se é feliz ou infeliz. Mas essa visão é peculiar ao liberalismo. A maioria das religiões e ideologias ao longo da história afirmou que há parâmetros objetivos para o bem, para a beleza e para como as coisas deveriam ser. Elas desconfiavam das sensações e das preferências das pessoas comuns. Na entrada do templo de Apolo em Delfos, os peregrinos eram recebidos pela inscrição: “Conhece-te a ti mesmo!”. A implicação era que o indivíduo médio ignora seu verdadeiro eu e, portanto, tende a ignorar a verdadeira felicidade. Freud provavelmente concordaria.
E também os teólogos cristãos. São Paulo e Santo Agostinho sabiam perfeitamente bem que, se as pessoas fossem indagadas a respeito, a maioria delas preferiria fazer sexo do que rezar para Deus. Isso prova que fazer sexo é o segredo para a felicidade? Não de acordo com São Paulo e Santo Agostinho. Só prova que a humanidade é pecadora por natureza e que as pessoas são facilmente seduzidas por Satã. De uma perspectiva cristã, a grande maioria das pessoas está mais ou menos na mesma situação que viciados em heroína. Imaginemos um psicólogo que embarca em um estudo de felicidade entre usuários de drogas. Ele os interroga e cada um deles declara que só é feliz quando injeta. O psicólogo publicaria um artigo declarando que a heroína é o segredo para a felicidade?
A ideia de que os sentimentos podem nos enganar não se restringe ao cristianismo. Pelo menos quando se trata do valor de sentimentos, até mesmo Darwin e Dawkins podem encontrar pontos em comum com São Paulo e Santo Agostinho. De acordo com a teoria do gene egoísta, a seleção natural faz com que as pessoas, assim como outros organismos, escolham o que é bom para a reprodução de seus genes, mesmo que isso seja ruim para elas como indivíduos. A maioria dos machos passa a vida trabalhando, se preocupando, competindo e lutando, em vez de desfrutar de felicidade pacífica, porque seu DNA os manipula para atender seus próprios objetivos egoístas. Como Satã, o DNA usa prazeres fugazes para tentar os indivíduos e subjugá-los.
Por conseguinte, a maioria das religiões e filosofias adotou uma abordagem muito diferente da do liberalismo para tentar compreender a felicidade. A posição budista é particularmente interessante. O budismo deu mais importância à questão da felicidade do que possivelmente qualquer outro credo humano. Durante 2,5 mil anos, os budistas estudaram de maneira sistemática a essência e as causas da felicidade, e é por isso que, na comunidade científica, há um interesse cada vez maior pela filosofia e pelas práticas de meditação budistas. O budismo concebe a felicidade da mesma forma que a biologia, isto é, entende que a felicidade resulta de processos que ocorrem em nosso corpo, e não de acontecimentos no mundo externo. No entanto, partindo da mesma noção elementar, o budismo chega a conclusões muito diferentes.
De acordo com o budismo, a maioria das pessoas identifica sensações agradáveis como felicidade e sensações desagradáveis como sofrimento. Em consequência, as pessoas atribuem enorme importância ao que sentem, ávidas por vivenciar cada vez mais sensações agradáveis e por evitar sensações desagradáveis. Independentemente do que fizermos ao longo de nossa vida, seja coçar a perna, remexer-se na cadeira, ou travar guerras mundiais, estamos apenas tentando obter sensações agradáveis.
O problema, de acordo com o budismo, é que os nossos sentimentos e sensações são apenas vibrações transitórias, que mudam a cada instante, como as ondas do oceano. Se há cinco minutos eu me sentia alegre e cheio de propósito, agora esses sentimentos se foram, e posso muito bem me sentir triste e deprimido. Então, se quero ter sensações agradáveis, devo persegui-las constantemente, enquanto trato de afastar as sensações desagradáveis. Mesmo que eu consiga fazer isso, logo tenho de começar tudo de novo, sem jamais obter recompensas duradouras por meus esforços.
O que há de tão importante em obter tais prêmios efêmeros? Por que se esforçar tanto para conquistar algo que desaparece quase no mesmo instante em que surge? De acordo com o budismo, a raiz do sofrimento não é a sensação de dor nem de tristeza e nem mesmo de falta de sentido. Em vez disso, a raiz do sofrimento é essa incessante e inútil busca de sensações efêmeras, que nos leva a estar em um constante estado de tensão, inquietude e insatisfação.
Devido a essa busca, a mente nunca está satisfeita. Mesmo quando sentimos prazer, ela não está contente, porque teme que essa sensação logo desapareça e deseja ardentemente que permaneça e se intensifique.
As pessoas só se libertam do sofrimento não quando experimentam essa ou aquela sensação de prazer, e sim quando entendem a natureza transitória de todos os seus sentimentos e param de persegui-los. Esse é o objetivo das práticas de meditação budistas. Na meditação, espera-se que você observe sua mente e seu corpo com atenção, que testemunhe o incessante ir e vir de todos os seus sentimentos e perceba como é inútil persegui-los. Quando a busca cessa, a mente fica tranquila, clara e satisfeita. Sentimentos de todo tipo continuam indo e vindo – alegria, raiva, tédio, desejo –, mas quando você para de ansiar por sentimentos específicos, pode simplesmente aceitá-los tal como são. Você vive o momento presente em vez de fantasiar sobre o que poderia ter sido.
A serenidade resultante é tão profunda que aqueles que passam a vida inteira em uma busca desenfreada por sensações agradáveis mal conseguem imaginá-la. É como um homem parado durante décadas à beira do mar, abraçando certas ondas “boas” e tentando impedir que elas quebrem e simultaneamente repelindo as ondas “más” para evitar que se aproximem. Dia sim, dia não, o homem está na praia, indo à loucura com esse exercício inútil. Ele acaba por se sentar na areia e apenas permite que cada onda venha e se vá a seu bel-prazer. Que paz!
Essa ideia é tão alheia à cultura liberal moderna que, quando os movimentos ocidentais da New Age descobriram ensinamentos budistas, eles os traduziram em termos liberais e, assim, os distorceram. Com frequência, os cultos da New Age afirmam: “A felicidade não depende de condições externas. Só depende do que sentimos dentro de nós. As pessoas devem parar de almejar conquistas externas como riqueza e status e, em vez disso, se conectar com suas sensações internas”. Ou, de maneira mais sucinta, “a felicidade começa dentro de você”. Isso é exatamente o que os biólogos afirmam, mas praticamente o oposto do que Buda disse.
Buda concordava com a biologia moderna e com os movimentos da New Age ao afirmar que a felicidade independe de condições externas. Mas sua compreensão mais importante e mais profunda foi que a verdadeira felicidade também independe de nossas sensações interiores. Com efeito, quanto mais importância damos a nossas sensações, mais ansiamos por elas, e mais sofremos. A recomendação de Buda era parar a busca não só de conquistas externas, como também, acima de tudo, a busca de sensações internas.
Para resumir, os questionários de bem-estar subjetivo identificam nosso bem-estar com nossas sensações subjetivas, e a busca de felicidade com a busca de certos estados emocionais. Por outro lado, para muitas filosofias e religiões tradicionais, como o budismo, o segredo da felicidade é conhecer a verdade sobre você mesmo – entender quem, ou o que, você é realmente. A maioria das pessoas se identifica, de maneira errônea, com suas sensações, pensamentos, gostos e desgostos. Quando sentem raiva, pensam: “Eu estou com raiva. Esta é minha raiva”. Em consequência, passam a vida evitando certos tipos de sensação e almejando outros. Elas nunca percebem que não são suas sensações e que a busca incessante por determinadas sensações só as aprisiona ao sofrimento.
Se é assim, toda a nossa compreensão da história da felicidade pode estar equivocada. Talvez não seja tão importante saber se as expectativas das pessoas são satisfeitas e se elas têm sensações agradáveis. A principal questão é se as pessoas conhecem seu verdadeiro eu. Que evidências nós temos de que as pessoas de hoje se conhecem melhor essa verdade do que os antigos caçadores-coletores ou os camponeses medievais?
Os acadêmicos começaram a estudar a história da felicidade há apenas alguns anos, e ainda estamos formulando as hipóteses iniciais e procurando os métodos de pesquisa adequados. É cedo demais para adotar conclusões rígidas e encerrar um debate que mal começou. O que é importante é conhecer tantas abordagens quanto possível e fazer as perguntas certas.
A maioria dos livros de história se concentra nas ideias dos grandes pensadores, na ousadia dos guerreiros, na caridade dos santos e na criatividade dos artistas. Eles têm muito a dizer sobre a construção e a destruição de estruturas sociais, sobre a ascensão e queda de impérios, sobre a descoberta e disseminação de tecnologias. Mas não dizem nada sobre como tudo isso influenciou a felicidade e o sofrimento dos indivíduos. Essa é a maior lacuna em nossa compreensão da história. É melhor começarmos a preenchê-la.
Yuval Noah Harari, in Sapiens – uma breve história da humanidade

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