sábado, 17 de março de 2018

A paixão de Jorge

Não é incomum apaixonar-se pela mulher de um amigo. Acontece de várias maneiras. O longo convívio com o amigo e a mulher pode ser tão íntimo e agradável que só muito tarde você se dá conta de que o que estava havendo entre você e a mulher do amigo, o tempo todo, era um namoro, que evoluiu para o amor. Ou você pode simplesmente acordar no meio da noite, depois de um sonho revelador, e dizer com espanto: “Eu amo a mulher do Nogueira!” Pode acontecer num acidente, num detalhe do cotidiano, um roçar de dedos ou um cruzar de olhares que detona a paixão incontrolável. Mas o nosso Jorge encontrou um jeito original, decididamente incomum, de se apaixonar pela mulher de um amigo. Apaixonou-se pela mulher do Nogueira (digamos que seu nome seja Nogueira) quando foi visitá-la na maternidade, depois que ela teve o primeiro filho com o Nogueira. A mulher do Nogueira estava amamentando a criança quando o Jorge entrou no quarto. O Jorge apaixonou-se pelo conjunto. Perdidamente. Até hoje, ele não pode contar sem se emocionar.

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O Jorge não sabe explicar o que houve. Antes, mal prestara atenção na mulher do Nogueira. Ela era bonita, mas de um jeito artificial, um jeito de boneca. Sempre bem penteada e bem maquiada, costumava sentar na ponta das cadeiras com as pernas coladas e um pé ligeiramente perpendicular ao outro, como se fosse uma característica superior da sua tribo. O Jorge só descobrira que ela estava no último estágio da gravidez quando notou um dia, por acaso, que a barriga avantajada a obrigava a sentar-se com as pernas um pouco abertas, mas sem perder a linha. Ela falava pouco e certa vez, quando a discussão no grupo era sobre política internacional, divertira a todos dizendo que não tinha nada contra o Bush, “mas ele lá e eu aqui”. O Jorge conhecia o Nogueira desde a adolescência e não entendia o que o amigo tinha visto naquela boneca decorativa e fútil. Mas, enfim, não era problema dele. E então entrara no quarto da maternidade e vira a Juliana (digamos que seu nome seja Juliana) amamentando seu recém-nascido.

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A Juliana sem maquiagem, com o cabelo em desalinho, com aquela calidez meio úmida e resplandecente que, segundo o Jorge, as mulheres adquirem depois do parto, sorrindo para o bebê que sugava o seu peito com uma calma e uma sabedoria tão antigas que o Jorge quase deixou cair as flores e levou as mãos ao coração, como no cinema mudo. “Sardas!”, nos disse o Jorge, extasiado. “Ela tem sardas!” As sardas no rosto limpo da Juliana tinham completado o sortilégio da cena, para o Jorge. Nos três dias que Juliana ficou no hospital, Jorge foi visitá-la todas as tardes, e ficava até ser expulso pelas enfermeiras. Para surpresa da Juliana, que também nunca prestara muita atenção naquele amigo meio esquisito do Nogueira e não entendia aquela súbita devoção.

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O problema, para o Jorge, passou a ser o que fazer com sua paixão. Não podia declará-la a Juliana. Muito menos confessá-la ao Nogueira. E, mesmo, poucas semanas depois do parto Juliana voltara a ser o que era, com as sardas escondidas por camadas de maquiagem e um pé ligeiramente perpendicular ao outro. A mesma boneca, só com seios maiores. Jorge perguntava muito pelo bebê, mas, fora isso, não tinha muito assunto com a mulher decorativa e fútil do Nogueira. Ao contrário das tardes no hospital, quando lhe contara a sua vida, quando assunto era o que não faltava. Aos poucos, a paixão do Jorge amainara. Até que um dia...

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Um dia, num dos almoços da turma, ouviu o Nogueira anunciar:
A Juliana está grávida de novo.
O coração do nosso Jorge deu um pulo, depois só ficou ronronando de prazer dentro do seu peito como um gato contente. A Juliana teria outro bebê. A sua amada estaria de volta!

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O Nogueira e a Juliana já estão com quatro filhos. (O terceiro é até afilhado do Jorge.) A cada novo parto o amor de Jorge por Juliana aumentou. E ninguém entendeu — só nós, que sabíamos da sua insólita paixão — o “Não!” que Jorge deixou escapar quando, no outro dia, Juliana disse que chegava, que não pretendia ter mais filhos. E por que Jorge em seguida passou a pontificar, indignado, sobre o absurdo preconceito dos casais modernos contra famílias grandes como as de antigamente. Oito, doze, dezessete filhos, por que não? Ele era contra o controle de natalidade por meios artificiais. Neste ponto, estava com o papa.
Luís Fernando Veríssimo, in Amor veríssimo

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