sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

A natureza sonha

Penso que a natureza sonha. Montanhas, florestas, mares, ares, rios, lagos, nuvens, cachoeiras, animais, flores – todos sonham um mesmo sonho. Sonham que chegará o dia em que os seres humanos desaparecerão da face da Terra. Pois os dinossauros não desapareceram? Quando isso acontecer será a felicidade! A natureza estará, finalmente, livre dos demônios que a destroem. A natureza, então, tranquilamente, sem pressa, se curará das feridas que lhe causamos.
Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola

O homem, irracional

Ou a razão, no homem, não faz senão dormir e engendrar monstros, ou o homem, sendo indubitavelmente um animal entre os animais, também é, indubitavelmente, o mais irracional deles todos. Vou-me inclinando cada vez mais para a segunda hipótese, não por ser eu doentiamente propenso a filósofos pessimistas, mas porque o espetáculo do mundo é, na minha humilde opinião, e de todos os pontos de vista, uma demonstração explícita e evidente do que chamo de irracionalidade humana.
José Saramago, in As palavras de Saramago

Crianças surpreende cantando "Cure o mundo", de Michael Jackson

Três metades

Meio dia,
um dia e meio,
meio dia, meio noite,
metade deste poema
não sai na fotografia,
metade, metade foi-se.
Mas eis que a terça metade,
aquela que é menos dose
de matemática verdade
do que soco, tiro, ou coice,
vai e vem como coisa
de ou, de nem, ou de quase.
Como se a gente tivesse
metades que não combinam,
três partes, destempestades,
três vezes ou vezes três,
como se quase, existindo,
só nos faltasse o talvez.
Paulo Leminski

O verdadeiro você

Um homem só se conhece em duas situações: quando está sob a ameaça de uma arma ou quando quer conquistar uma mulher. Há quem diga que existe um terceiro teste: como o homem reage diante de um vitral da catedral de Chartres. Pode ter sido um materialista incréu a vida toda, mas diante de um vitral da catedral de Chartres se descobre um místico - ou não. Sei de céticos que, com certa luz do entardecer batendo nos vitrais da catedral de Chartres, chegaram a levitar alguns centímetros, até racionalizarem a situação e voltarem para o chão. Mas só nos conhecemos, mesmo, na frente de uma arma ou atrás de uma mulher.
Você pode argumentar que ambas são situações de descontrole emocional. Errado: o descontrole é o homem. O controle é o disfarce. Você deve se julgar pelo seu comportamento quando enfrentou a possibilidade da morte ou quando estava a fim da (o nome é hipotético) Gesileide. Aquela vez que você se escondeu atrás de um poste para ver se ela chegava em casa com alguém. Meia-noite e você atrás do poste, sob o olhar curioso de cachorros e porteiros, fingindo que lia a lista do bicho no escuro. Aquele imbecil - e não esse cidadão adulto, respeitável, razoável, comedido, talvez até com títulos - é você. Tudo o mais é a capa do imbecil essencial. Tudo o mais é fingimento.
Você nunca foi tão você quanto atrás daquele poste.
Pense em tudo o que você já fez para conquistar uma mulher. Os falsos encontros casuais, cuidadosamente arquitetados. Os falsos telefonemas errados, só para ouvir a voz dela. (“Telefonei para você? Onde eu estou com a cabeça!”) As bobagens que você disse, tentando impressioná-la. Pior, as bobagens que você ensaiou em casa e disse como se tivesse pensado na hora. O que você lhe escreveu, sem revisão ou autocrítica.
Aquele ridículo era você. Os dias e dias que você passou só pensando nela. O país desse jeito, e você só pensando nela. Sem dormir, pensando nela. Tanta coisa para fazer, e você escrevendo o nome dela sem parar. Gesileide (digamos), Gesileide, Gesileide... E as mentiras? E a vez que você inventou que era meio-primo do Julio Iglesias?
E o que você sofreu quando parecia que não ia dar certo? Como um adolescente. Aquele adolescente era você. Isso que você é agora é o disfarce, é o imbecil essencial em recesso provisório.
Só o vexame é autêntico num homem.
Luís Fernando Veríssimo, in As mentiras que os homens contam

Calvin

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Os cimos: O trabalho do pássaro

Assim, o Menino, entre dia, no acabrunho, pelejava com o que não queria querer em si. Não suportava atentar, a cru, nas coisas, como são, e como sempre vão ficando: mais pesadas, mais-coisas — quando olhadas sem precauções. Temia pedir notícias; temia a Mãe na má miragem da doença? Ainda que relutasse, não podia pensar para trás. Se queria atinar com a Mãe doente, mal, não conseguia ligar o pensamento, tudo na cabeça da gente dava num borrão. A Mãe da gente era a Mãe da gente, só; mais nada.
Mas, esperava; pelo belo. Havia o tucano — sem jaça — em voo e pouso e voo. De novo, de manhã, se endereçando só àquela árvore de copa alta, de espécie chamada mesmo tucaneira. E dando-se o raiar do dia, seu fôlego dourado. Cada madrugada, à horinha, o tucano, gentil, rumoroso: ...chégochégochégo... — em voo direto, jazido, rente, traçado macio no ar, que nem um naviozinho vermelho sacudindo devagar as velas, puxado; tão certo na plana como se fosse um marrequinho deslizando para a frente, por sobre a luz de dourada água.
Depois do encanto, a gente entrava no vulgar inteiro do dia. O dos outros, não da gente. As sacudidelas do jeep formavam o acontecer mais seguido. A Mãe sempre recomendara zelo com as roupinhas; mas a terra aqui era à desafiada. Ah, o bonequinho macaquinho, mesmo sempre no bolso, se sujava mais de suor e poeira. Os mil e mil homens muitamente trabalhavam fazendo a grande cidade.
Mas o tucano, sem falta, tinha sua soência de sobrevir, todos ali o conheciam, no pintar da aurora. Fazia mais de mês que isso principiara. Primeiro, aparecera por lá uma bandada de uns trinta deles, vozeantes, mas sendo de-dia, entre dez e onze horas. Só aquele ficara, porém, para cada amanhecer. Com os olhos tardos tontos de sono, o bonequinho macaquinho em bolso, o Menino apressuradamente se levantava e descia ao alpendre, animoso de amar.
O Tio lhe falava, com excessivos de agrado, sem o jeito nenhum. Saíam — sobre o se-fazer das coisas. Tudo a poeira tapava. O bonequinho macaquinho, um dia, devia de poder ganhar algum outro chapeuzinho, de alta pluma; mas verde, da cor da gravata, tão sobressaída, com que o Tio, de camisa, agora não estava. O Menino, em cada instante, era como se fosse só uma certa parte dele mesmo, empurrado para diante, sem querer. O jeep corria por estradas de não parar, sempre novas. Mas o Menino, em seu mais forte coração, declarava, só: que a Mãe tinha de ficar boa, tinha de ficar salva!
Esperava o tucano, que chegava, a-justo, a-tempo, a-ponto, às seis-e-vinte da manhã; ficava, de arvoragem, na copa da tucaneira, futricando as frutas, só os dez minutos, comidos e estrepulados. Daí, partia, sempre naquele outro-rumo, no antes do pingado meio-instante em que o sol arrebolava redondo do chão; porque o sol era às seis-e-meia. O Tio media tudo no relógio.
De dia, não voltava lá. Se donde vinha e morava — das sombras do mato, os impenetráveis? Ninguém soubesse seus usos verdadeiros, nem os certos horários: os demais lugares, aonde iria achar comer e beber, sobre os pontos isolados. Mas o Menino pensava que devia acontecer mesmo assim — que ninguém soubesse. Ele vinha do diferente, só donde. O dia: o pássaro.
Entremeio, o Tio, recebido um telegrama, não podia deixar de mostrar a cara apreensiva — o envelhecimento da esperança. Mas, então, fosse o que fosse, o Menino, calado consigo, teimoso de só amor, precisava de se repetir: que a Mãe estava sã e boa, a Mãe estava salva!
De repente, ouviu que, para consolá-lo, combinavam maneira de pegar o tucano: com alçapão, pedrada no bico, tiro de espingardinha na asa. Não e não! — zangou-se, aflito. O que cuidava, que queria, não podendo ser aquele tucano, preso. Mas a fina primeira luz da manhã, com, dentro dela, o voo exato.
O hiato — o que ele já era capaz de entender com o coração. Ao outro dia seguinte. Aí, quando o pássaro, seu raiar, cada vez, era um brinquedo de graça. Assim como o sol: daquela partezinha escura no horizonte, logo fraturada em fulgor e feito a casca de um ovo — ao termo da achãada e obscura imensidão do campo, por onde o olhar da gente avançava como no estender um braço.
O Tio, entanto, diante dele, parou sem a qualquer palavra. O Menino não quis entender nenhum perigo. Dentro do que era, disse, redisse: que a Mãe nem nunca tinha estado doente, nascera sempre sã e salva! O voo do pássaro habitava-o mais. O bonequinho macaquinho quase caíra e se perdera: já estando com a carinha bicuda e meio corpo saídos do bolso, bisbilhotados! O Menino não lhe passara pito. A tornada do pássaro era emoção enviada, impressão sensível, um transbordamento do coração. O Menino o guardava, no fugidir, de memória, em feliz voo, no ar sonoro, até à tarde. O de que podia se servir para consolar-se com, e desdolorir-se, por escapar do aperto de rigor — daqueles dias quadriculados.
Ao quarto dia, chegou um telegrama. O Tio sorriu, fortíssimo. A Mãe estava bem, sarada! No seguinte — depois do derradeiro sol do tucano — voltariam para casa.
Guimarães Rosa, in Primeiras estórias

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Poças d'água

As poças d’água na calçada esburacada — não, isto não é um protesto: é, a seu modo, uma espécie de poema, que por sinal já saiu rimando... Fosse uma reclamação, eu a publicaria no “Correio do Leitor”, seção competente onde cada um exerce o direito da sua opinião privada sobre a coisa pública. As poças d’água na calçada, como eu ia dizendo, são, em meio ao tráfego congesto, o único esporte que resta ao viandante na contingência de lhes saltar por cima ou devidamente contorná-las. Há velhinhas — quem diria? — que sabem transpô-las com infinita graça, equilibrando no alto a sombrinha como a moça do arame no circo. Há graves senhores pançudos que o fazem cuidadosamente, eficientemente, com uma perfeição que justifica o seu status. E há também os sujeitos, nada pançudos, nada graves, antes pelo contrário, e que nos fazem lembrar os chamados “saltapocinhas” do Segundo Império. Quanto às crianças, estas adoram as poças d’água... Nem é necessário alegar, a seu respeito, uma compulsiva comunhão com a natureza.
Comunhão com a natureza tive-a eu, quando uma noite caí de borco ao praticar esse esporte e fui parar no pronto-socorro, de nariz quebrado. A moça otorrino que gentilmente me atendeu mostrou-se preocupada com o meu vômer, que eu não sabia o que era. Explicou-me que se tratava do osso que dividia as fossas nasais. Quanto aos outros, os da ponta do nariz, eram os ditais e, se fossem os vitimados, não tinha importância, pois acabariam acomodando-se por si mesmos.
Como vês, leitor amigo, a vida é assim: caindo e aprendendo... E, caso me ocorram outros acidentes, acabarei enfim sabendo anatomia, matéria que faz muito tempo que não estudei nos bancos escolares.
Mas o que me deixou mesmo mais eufórico foi ao ler no boletim clínico que toda aquela sangueira nas ventas tinha o nome de epistaxe. Epistaxe, meu Deus! Até parece uma figura de retórica... 
 
As poças d’água são um mundo mágico
Um céu quebrado no chão
Onde em vez das tristes estrelas
Brilham os letreiros de gás néon.
Mário Quintana, in A vaca e o hipogrifo

A brasilidade no traço de Portinari

Cangaceiro (1958), de Cândido Portinari

Irmão, irmãos

Cada irmão é diferente.
Sozinho acoplado a outros sozinhos.
A linguagem sobe escadas, do mais moço,
ao mais velho e seu castelo de importância.
A linguagem desce escadas, do mais velho
ao mísero caçula.

São seis ou são seiscentas
distâncias que se cruzam, se dilatam
no gesto, no calar, no pensamento?
Que léguas de um a outro irmão.
Entretanto, o campo aberto,
os mesmos copos,

o mesmo vinhático das camas iguais.
A casa é a mesma. Igual,
vista por olhos diferentes?

São estranhos próximos, atentos
à área de domínio, indevassáveis.
Guardar o seu segredo, sua alma,
seus objetos de toalete. Ninguém ouse
indevida cópia de outra vida.

Ser irmão é ser o quê? Uma presença
a decifrar mais tarde, com saudade?
Com saudade de quê? De uma pueril
vontade de ser irmão futuro, antigo e sempre?
Carlos Drummond de Andrade

Emoção e caráter

Obedecer aos próprios sentimentos? Arriscar a vida ao ceder a um sentimento generoso ou a um impulso de momento... Isso não caracteriza um homem: todos são capazes de fazê-lo; neste ponto, um criminoso, um bandido, um pirata certamente superam um homem honesto. O grau de superioridade é vencer em si esse elã e realizar o ato heroico, não por um impulso, mas friamente, razoavelmente, sem a expansão de prazer que o acompanha. Outro tanto acontece com a piedade: ela há-de ser habitualmente filtrada pela razão; caso contrário, é tão perigosa como qualquer outra emoção. A docilidade cega perante uma emoção - tanto importa que seja generosa ou piedosa como odienta - é causa dos piores males. A grandeza de caráter não consiste em não experimentar emoções; pelo contrário, estas são de ter no mais alto grau; a questão é controlá-las e, ainda assim, havendo prazer em modelá-las, em função de algo mais.
Friedrich Nietzsche, in A vontade de poder

Preso ao mundo burguês

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Viver no mundo como se não fosse o mundo, respeitar a lei e no entanto colocar-se acima dela, possuir uma coisa “como se não a possuísse”, renunciar como se não tratasse de uma renúncia, todas essas proposições favoritas e formuladas com frequência, todas essas exigências de uma alta ciência da vida somente pode realizá-las o humor. E no caso do Lobo da Estepe, a quem não faltam faculdades e disposições para tanto, se lograsse, no labirinto de seu inferno, absorver e transpirar essa bebida mágica, então estaria salvo. Ainda lhe falta muito para isso, mas a possibilidade, a esperança existem. Quem o ama, quem se interessa por ele, pode desejar-lhe esta salvação. Ela iria, é verdade, mantê-lo preso ao mundo burguês, mas seu padecimento seria suportável e produtivo. Suas relações com o mundo burguês quer no amor ou no ódio perderiam seu sentimentalismo e sua sujeição a ele cessaria de atormentá-lo continuamente como um opróbrio. Para alcançar isto, ou para, afinal, ser capaz de tentar o salto no desconhecido, teria um lobo da estepe de defrontar-se algumas vezes consigo mesmo, olhar profundamente o caos de sua própria alma e chegar à plena consciência de si mesmo. Sua existência enigmática revelar-se-ia então para ele em toda sua invariabilidade e ser-lhe-ia impossível para sempre no futuro escapar do inferno de seus impulsos e refugiar-se em consolos filosóficos e sentimentais. Seria necessário que o homem e o lobo se conhecessem mutuamente sem falsas máscaras sentimentais, que se fitassem nos olhos em toda a sua nudez. Então explodiriam ou se separariam para sempre, de modo que não voltariam a existir lobos da estepe ou chegariam a bons termos à luz nascente do humor. É possível que Harry tenha um dia esta última possibilidade. E possível que um dia aprenda a conhecer-se, seja porque receberá nas mãos um dos nossos espelhinhos, seja porque alcance o Imortal ou talvez encontre num dos nossos teatros mágicos aquilo de que necessita para libertar sua alma desgarrada. Mil possibilidades o esperam, seu destino as atrai irremediavelmente, pois todos esses solitários da burguesia vivem na atmosfera dessas mágicas possibilidades. Basta apenas um nada para que se produza a centelha. E tudo isso é amplamente conhecido pelo Lobo da Estepe, ainda que seus olhos nunca venham a dar com este fragmento de sua biografia íntima. Ele suspeita e teme a possibilidade de um encontro consigo mesmo, e está cônscio da existência daquele espelho no qual tem uma necessidade tão amarga de olhar-se e no qual teme mortalmente ver-se refletido. Para terminar nosso estudo resta esclarecer ainda uma última ficção, um engano fundamental. Todas as interpretações, toda psicologia, todas as tentativas de tornar as coisas compreensíveis se fazem por meio de teorias, mitologias, de mentiras; e um autor honesto não deveria furtar-se, no fecho de uma exposição, a dissipar essas mentiras dentro do possível. Se digo “acimas” ou “abaixo”, isso já é uma afirmação, que exige um esclarecimento, pois só existem acima e abaixo no pensamento, na abstração. O mundo mesmo não conhece nenhum acima nem abaixo. Da mesma maneira, para ser sucinto, o lobo da estepe também é uma ficção. Se o próprio Harry se sente como homem-lobo e se crê formado por dois seres inimigos e opostos, isso é puramente uma mitologia simplificadora. Harry não é nenhum homem-lobo, e se aceitamos a princípio sua mentira, inventada e acreditada por ele mesmo, e tentamos considerá-lo e explicá-lo dentro da realidade como um ser duplo, como um lobo da estepe, foi porque nos aproveitamos dela para sermos compreendidos mais facilmente, mentira essa cuja retificação deve ser tentada agora.
Hermann Hesse, in O Lobo da Estepe

Ivan Lins e Rafael Alterio - Atrás Poeira

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Familiaridade

Ando numa fase um pouco perigosa. É que estou estabelecendo contato com as pessoas com tanta facilidade que alguma ainda me acontece. Nesta fase, todo o mundo ou é meu irmão, ou meu filho, ou meu pai e minha mãe. No último domingo estive em perigo. Eu tentava pegar um táxi, o que nos domingos é mais difícil pois muita gente que nunca anda de táxi resolve sair do sério e tomar. Não encontrei nenhum no lugar onde geralmente acho com facilidade, e resolvi caminhar até um ponto deles: estava vazio, a rua limpa. Fiquei ali mesmo esperando que algum aparecesse. Depois de muito tempo quem apareceu foi um grupo de pré-adolescentes, de uns 14 anos cada, não mais. As duas mocinhas de saia pelo meio das coxas, um dos meninos de cabelos crescidos até metade do pescoço. Junto de mim pararam, e a conversa deles era insolente e falsamente livre. Pensei: estão esperando táxi, quem vai ganhar são eles, pois sempre me recuso a correr, acho feio correr. Pensamento vai, pensamento vem, resolvi perguntar: “Vocês estão esperando táxi?” Resposta em tom malcriado de um deles: “Estamos”. Eu disse: “Mas o primeiro que vier vai ser meu, pois estou aqui há mais tempo que vocês.” O menino cabeludo respondeu com o pior tom de voz: “E por que é que eu...” Interrompi-o: “Por causa do que eu já disse, e porque eu podia ser mãe de vocês e não pretendo disputar táxi com um filho meu.” Eles ficaram por meio segundo me olhando perplexos, e então o menino respondeu com a voz inteiramente obediente e de súbito como uma criança mesmo: “Sim senhora.” O perigo passara.
Clarice Lispector, in A descoberta do mundo

Hagar, o Horrível

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Amor de verdade

O verdadeiro amor é como a aparição dos espíritos: toda a gente fala dele, mas poucos o viram.”

La Rochefoucauld

Realismo e nova realidade (trecho)

O realismo, no sentido estrito, foi um método para conquistar a realidade para o romance. Toda a realidade, pois era importante nada excluir dela — nem em favor de convenções estéticas, nem de convenções morais burguesas. Essa era a realidade tal como a viam alguns espíritos abertos e sem preconceitos do século XIX. Mas já então não viam tudo, o que, aliás, lhes foi devidamente censurado por aqueles seus contemporâneos que caprichosamente persistiam em exercícios outros, e aparentemente marginais. Mas, mesmo que possamos hoje admitir com convicção que os poucos representantes verdadeiramente significativos dentre os realistas alcançaram realmente seu objetivo; que conseguiram abarcar toda a sua realidade para o romance; que sua época foi mostrada, sem sobras, em suas obras — o que significaria isso para nós? Poderiam aqueles dentre nós que buscam a mesma meta — mas como homens do nosso tempo — e se veem como realistas modernos servir-se desses mesmos métodos?
Pressentimos já qual será a resposta a essa questão, mas, antes de enunciá-la, cabe refletir sobre o que foi feito da realidade de então. Ela se modificou em tão grande escala que mesmo uma noção preliminar desta nos deixa já completamente perplexos. Uma tentativa de dominar essa perplexidade leva-nos, penso eu, a distinguir três aspectos essenciais dessa mudança. Há uma realidade crescente e uma realidade mais exata; em terceiro lugar, há a realidade do devir.
É fácil perceber o que se quer dizer com o primeiro desses aspectos, ou seja, com a realidade crescente: há aqui muito mais coisas, não apenas quantitativamente (mais seres humanos e objetos); mas há infinitamente mais coisas também sob o aspecto qualitativo. O Velho, o Novo e o Outro afluem de todos os lados. O Velho: um número cada vez maior de culturas passadas é desenterrado; história e pré-história recuam cada vez mais no tempo. Uma arte antiga, de uma perfeição enigmática, tirou-nos para sempre a altivez com relação à nossa própria arte. A terra volta a ser povoada com seus mortos mais antigos. Eles ressuscitaram por meio de suas ossadas, seus utensílios, suas pinturas rupestres, e vivem agora em nosso imaginário como os cartagineses e egípcios viveram no imaginário dos homens do século XIX. O Novo: muitos de nós nasceram antes que o homem pudesse voar, e agora com certeza já fizeram sua viagem a Viena de avião. Alguns dos mais jovens entre nós serão ainda mandados à lua como turistas, e se envergonharão talvez, após o seu regresso, de publicar uma descrição sobre algo tão banal — assim como agora me envergonho de enumerar outras “novidades”. Na minha infância, tais novidades surgiam ainda como milagres únicos: minha primeira lâmpada elétrica, minha primeira conversa telefônica. Hoje, as novidades nos rodeiam aos milhares, como moscas.
Além do Velho e do Novo, mencionei ainda o Outro, que aflui de todos os lugares: as cidades estrangeiras mas de fácil acesso, os países e continentes, a segunda língua, que cada um aprende paralelamente à língua materna (e muitos aprendem uma terceira e mesmo uma quarta línguas). Há também a investigação rigorosa de culturas estranhas, as exposições de sua arte, as traduções de obras de sua literatura; a investigação de povos primitivos ainda existentes: seu modo de vida material, a organização de sua sociedade, as formas que assumem sua crença e seus ritos, seus mitos. Aquilo que existe de completamente Outro, como as ricas e instigantes descobertas dos etnólogos, é incomensurável e não pode de forma alguma — como em geral se assumia antigamente, e como alguns ainda hoje gostariam de assumir — ser reduzida a uns poucos achados. Para mim, pessoalmente, esse crescimento da realidade é o mais significativo, porque sua apropriação demanda mais esforço que a apropriação do banalmente Novo, evidente a todos; mas, talvez, também porque ele reduz saudavelmente nossa altivez, que se deixa insuflar indiscriminadamente com o Novo. Com efeito, reconhece-se, entre outras coisas, que tudo já fora preconcebido nos mitos: o que hoje, com desembaraço, tornamos realidade são ideias e desejos antiquíssimos. No entanto, no que toca nossa capacidade de inventar novos desejos e mitos, estamos deploravelmente mal servidos. Vasculhamos os antigos, como que a remoer ruidosamente preces, sem ao menos sabermos o que essas preces mecânicas significam. Essa é uma experiência que deveria fazer-nos refletir, nós, poetas, que como tais temos a incumbência, sobretudo, de inventar o Novo. Finalmente, não quero deixar de mencionar ainda que o Outro, que só agora experimentamos seriamente, não se refere apenas aos seres humanos. A vida, tal como foi sempre a dos animais, ganha para nós um outro sentido. O conhecimento crescente de seus ritos e jogos demonstra, por exemplo, que eles — a quem, três séculos atrás, declaramos oficialmente máquinas — possuem algo como uma civilidade que pode ser comparada à nossa.
A ampliação de nossa época, sua realidade crescente, a uma aceleração para a qual não se pode antever meta alguma, é também a causa de sua confusão.
Elias Canetti, in A consciência das palavras

O cão e o frasco

Meu lindo cachorro, meu bom cão, querido totó! Aproxime-se, venha respirar um excelente perfume comprado na casa do melhor perfumista da cidade.
E o cão, sacudindo a cauda, o que me parece ser, nesses pobres seres, um sinal correspondente à gargalhada e ao sorriso, aproxima-se e pousa curiosamente o focinho no frasco aberto. Mas depois, recuando bruscamente, assustado, late contra mim, à guisa de censura.
Ah! miserável cão, se eu lhe tivesse oferecido um punhado de excremento, você o farejaria com delícia e talvez o devorasse. Até você, indigno companheiro de minha vida triste, se parece com o público, ao qual nunca se devem apresentar perfumes delicados que o exasperem, mas sujeiras cuidadosamente escolhidas.
Charles Baudelaire, in Pequenos poemas em prosa

Mar me quer (segundo capítulo)

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Lançamos o barco, sonhamos a viagem: quem viaja é sempre o mar.
(Dito de meu avô Celestiano)

Pois, lhe digo, minha Dona. É uma pena a senhora andar por aí fatigando seus olhos pelo mundo. Devia era, logo de manhã, passar um sonho pelo rosto. É isso que impede o tempo e atrasa a ruga. Sabe o que faz? Estende-se aí na areia, oblonga-se deitadinha, estica a alma na diagonal. Depois, fica assim, caladita, rentinha ao chão, até sentir a terra se enamorar de si. Digo-lhe, Dona: quando ficamos calados, igual uma pedra, acabamos por escutar os sotaques da terra. A senhora num certo momento, há-de ouvir um chão marinho, faz conta é um mar sob a pele do chão. Aproveita esse embalo, Dona Luarmina. Eu tiro boas vantagens desses silêncios submarinhos. São eles que me fazem adormecer ainda hoje. Sou criança dele, do mar.
Lá criança, sim. Você há muito que esqueceu a idade.
Sabe o que dava jeito? Era a gente os dois nos combinarmos, está a perceber, Dona Luarmina?
Ajuíze-se, Zeca.
Faz conta somos verbo e sujeito.
Já conheço essa sua gramática...
A senhora, minha boa Dona, nem sabe quanto enriquece minha retina.
Luarmina nem destroca resposta. E com razão. Sou um quem, eu? Um caçador de peixe que nem tem a quem contar suas aventuras. É verdade, Dona, não posso nem dar lustro nas minhas mentiras. Será que são mentiras? Se eu, que não testemunhei o que eu próprio relato, acabo me acreditando? O mar é que tem culpas — pois lá se esbatem os limites -, tudo ali pode ser. No mar não há palavra, nem ninguém pede contas à verdade. Como dizia o velho Celestiano: onde sempre é meio-dia, tudo é noturno.
Volto à mulher, Dona Luarmina. Nunca ninguém foi tão vizinho. Porque ela quando não me está nas vistas está-me nos sonhos. Sempre e sempre essa polposa e carnudona mulher. O rabo foi quem mais lhe cresceu, cresceu mais que as nádegas. Em tempos, ela acendeu prontidões masculinas. Mas agora, está apagada. Não para mim que me acendo em sua presença e ardo em sua ausência.
Ao fim de cada tarde, me encaminho para sua casa. Engraçado o seu lugarzinho: só tem traseiras. Quase como a Dona. Porque a gente para o contornar nem tem que dar a volta. Chega-se lá e estamos logo atrás. Sento-me num velho tronco e fico olhando a mulher desfolhando-se: — Mar me quer...
Depois, digo de mim para mim: quem dera eu meter a mão nos remetentes dela! Uma dessas noites, estendido na esteira, até sonhei que me aproximava do assento dela e lhe desenrolava falas, as seguintes:
Me deixe apalpar nas suas nádegas, é um instantinho tão brevezito que a senhora nem precisa esquecer meu atrevimento.
Qual?
Como qual, Dona Luarmina?
Qual das nádegas?
A arbitrária, Dona. Então a senhora não recorda as contas da geometria, a soma dos fatores é arbitrária?
Enquanto falava já minha mão viajava naquelas gorduras vivas dela, comboiozinho doido ondulando pelas topografias do seu assento. Eu andava de bicos de mãos pelas reentrâncias dela.
Que é isto? O senhor ainda não foi autorizado.
Essa minha mão, Dona Luarmina, pertence ao setor informal.
Você, Zeca Perpétuo, é que é todo do setor informal.
A senhora conhece o ditado, não conhece? Mais vale uma mão no pássaro...
Você é um abusador...
Isto são sonhos, só sonhos. Sabe o que sonhei ontem, Dona Luarmina? Pois lhe conto, não me corte as falas.
A senhora ia comigo ali ao Baixo da Nuvem e dançava comigo. Dançava de branco, toda respeitosa. Eu fechava os olhos e, de repente, você me dizia, baixinho, ao ouvido: — Veja: estou nua como o peixe. Eu me arrepiava. Nem tinha coragem de abrir os olhos. Sua voz zunzunava junto à minha orelha:
Mas, veja bem: tenho tatuagem, aqui na barriga. Veja com sua mão. Sim, aí. Mais em baixo, também, na roda da anca, passe o dedo lá, sim. Isso mesmo, aí. São tatuagens para você não escorregar.
Tudo aquilo era bonito e fresco de inventar. Mas não pude continuar a lembrança do sonho. Dona Luarmina me interrompeu e me sacudiu com sua mão papuda.
Cala-se, Zeca. Você já é velhotezito. Por que sonha ainda essas coisas?
Sou velho, o caraças. A senhora que gosta tanto de aves me responda: penas de pássaro se gastam?
Mas o senhor, agora, só voa rente ao chão.
Aí é que está, Dona Luarmina: nos embaixos é que está a graça.
Luarmina não estava para as graças. De vez em quando, ela dispensava um sorriso. No resto, ela fechava uma tristeza de não ter tido filho. Quando eu lhe apelidava de flor ela, azeda, voltava à descarga:
Não me chame de flor que me dói. A semente é a única pegada da flor. E eu não deixei filho neste mundo.
Culpa não foi sua. Nenhum inseto certo lhe soube pousar. Fosse era eu.
Caludas, Zeca.
Escute o que eu falo: você, sim, é flor.
Está, sou flor. Mas uma dessas que nunca serviu.
Você serviu belezas, Luarmina.
E para que servem as belezas? Para nada.
Veja, exemplo, só: quem lustra mais o céu? Não é o arco-íris? E, pois, me diga: qual o serviço que tem o arco-íris?
Nem sei lá.
Tem o serviço só de fantasiar, de ensinar o céu a sonhar.
Mas ela voltava ao semimesmo. Eu que a desculpasse. Porque ela se tinha definitiva como a ruína. E falava:
Perdi o tempo, mas o tempo, esse é que não se esquece de mim.
Assim dizia, apontando as peles envelhecidas do pescoço. E eu, no conforto: pois o tempo não lhe larga o pé, graças e desgraças a Deus. Porque sou eu e é o tempo, os dois lhe competindo, Dona Luarmina. Deixe que seja eu a ganhar. Por amor de Deus, Dona...
Quer mesmo me apaladar?
Se quero, Dona!
Então me desfie uma memória sua, uma verdadeira…
Mia Couto, in Mar me quer

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Desvio

Podemos marcar um desencontro.
Eu mando a carta,
fico sem resposta,
você sai do jogo,
eu faço a aposta,
tentamos a canção, mas desafina;
rezamos a oração, mas descombina,
o beijo desvia e escorrega,
a palavra tropeça e foge à regra,
eu escolho o sol − você a bruma,
voltamos sempre ao lugar-comum.
Eu desajeito, você desarruma,
nós dois: motivo algum.
Flora Figueiredo

Morrer podre de rico

Morrer rico é extrema incompetência. Significa que você não usufruiu, ou pelo menos não usufruiu todo o seu dinheiro. Além disso, um rico que gasta tudo o que tem antes de morrer, livra os seus herdeiros do odioso imposto de transmissão.
Millôr Fernandes

Carta a um jovem poeta

Paris, 17 de fevereiro de 1909

Prezadíssimo Senhor,

Sua carta alcançou-me apenas há poucos dias. Quero agradecer-lhe a grande e amável confiança. Pouco mais posso fazer. Não posso entrar em considerações acerca da feição de seus versos, pois sou alheio a toda e qualquer intenção crítica. Não há nada menos apropriado para tocar numa obra de arte do que palavras de crítica, que sempre resultam em mal-entendidos mais ou menos felizes. As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. Menos suscetíveis de expressão do que qualquer outra coisa são as obras de arte, - seres misteriosos cuja vida perdura, ao lado da nossa efêmera.
Depois de feito este reparo, dir-lhe-ei ainda que seus versos não possuem feição própria, somente acenos discretos e velados de personalidade. (...) Pergunta se os seus versos são bons. Pergunta-o a mim, depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a periódicos, compara-os com outras poesias e inquieta-se quando suas tentativas são recusadas por um ou outro redator. Pois bem - usando da licença que me deu de aconselhá-lo - peço-lhe que deixe tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, - ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a sim mesmo na hora mais tranquila de sua noite: “Sou mesmo forçado a escrever?” Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples “sou”, então construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão. Aproxime-se então da natureza. Depois procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. Não escreva poesias de amor. Evite de início de formas usuais e demasiado comuns: são essas as mais difíceis, pois precisa-se de uma força grande e amadurecida para se produzir algo de pessoal num domínio em que sobram tradições boas, algumas brilhantes. Eis por que deve fugir dos motivos gerais para aqueles que a sua própria existência cotidiana lhe oferece; relate suas mágoas e seus desejos, seus pensamentos passageiros, sua fé em qualquer beleza - relate tudo isto com íntima e humilde sinceridade. Utilize, para se exprimir, as coisas de seu ambiente, as imagens de seus sonhos e os objetos de suas lembranças. Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas. Para o criador, com efeito, não há pobreza nem lugar mesquinho e indiferente. Mesmo que se encontrasse numa prisão, cujas paredes impedissem todos os ruídos do mundo de chegar aos seus ouvidos, não lhe ficaria sempre sua infância, essa esplêndida e régia riqueza, esse tesouro de recordações? Volte a atenção para ela. Procure soerguer as sensações submersas nesse longínquo passado: sua personalidade há de reforçar-se, sua solidão há de alargar-se e transformar-se numa habitação entre lusco e fusco diante da qual o ruído dos outros passa longe, sem nela penetrar. Se depois desta volta para dentro, deste ensimesmar-se, brotarem versos, não mais pensará em perguntar seja a quem for se são bons. Nem tão pouco tentará interessar as revistas por esses seus trabalhos, pois há de ver neles sua querida propriedade natural, um pedaço e uma voz de sua vida. Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Neste caráter de origem está o seu critério, - o único existente. Também, meu prezado senhor, não lhe posso dar outro conselho fora deste: entrar em si e examinar as profundidades de onde jorra a sua vida; na fonte desta é que encontrará a resposta à questão de saber se deve criar. Aceite-a tal com se lhe apresentar à primeira vista sem procurar interpretá-la. Talvez venha a significar que o senhor é chamado a ser um artista. Nesse caso aceite o destino e carregue-o com seu peso e sua grandeza, sem nunca se preocupar com recompensa que possa vir de fora. O criador, com efeito, deve ser um mundo para si mesmo e encontrar em si e nessa natureza a que se aliou.
Mas talvez se dê o caso de, após essa descida em si mesmo e em seu âmago solitário, ter o senhor de renunciar a se tornar poeta. (Basta, como já disse, sentir que se poderia viver sem escrever para não mais se ter o direito de fazê-lo). Mesmo assim, o exame de consciência que lhe peço não terá sido inútil. Sua vida, a partir desse momento, há de encontrar caminhos próprios. Que sejam bons, ricos e largos é o que lhe desejo, muito mais do que lhe posso exprimir.
Que mais lhe devo dizer? Parece-me que tudo foi acentuado segundo convinha. Afinal de contas, queria apenas sugerir-lhe que se deixasse chegar com discrição e gravidade ao termo de sua evolução. Nada a poderia perturbar mais do que olhar para fora e aguardar de fora respostas e perguntas a que talvez somente seu sentimento mais íntimo possa responder na hora mais silenciosa.
(...)
Restituo-lhe ao mesmo tempo os versos que me veio confiar amigavelmente. Agradeço-lhe mais uma vez a grandeza e a cordialidade de sua confiança. Procurei por meio desta resposta sincera, feita o melhor que pude, tornar-me um pouco mais digno dela do que realmente sou, em minha qualidade de estranho.
Com todo o devotamento e toda a simpatia,

Rainer Maria Rilke
Rainer Maria Rilke, em Cartas a um jovem poeta (tradução de Paulo Ronái)

"Dreams", série do escultor chinês Wang Ruilin


 
 
 
 

 

 


 

 

 

 

 

Acesse o sítio do artista aqui.

Difícil e raro: uma mentira inocente

Julgar os discursos dos homens através dos efeitos que produzem equivale frequentemente a apreciá-los mal. Tais efeitos, para além de nem sempre serem sensíveis e fáceis de conhecer, variam infinitamente, tal como as circunstâncias em que esses discursos são proferidos.
A intenção daquele que os profere, porém, é a única que permite apreciá-los e que determina o seu grau de malícia ou de bondade. Proferir afirmações falsas só é mentir quando existe intenção de enganar, e mesmo essa intenção, longe de se aliar sempre à de prejudicar, tem por vezes um objetivo oposto. Todavia, para tornar inocente uma mentira, não basta que a intenção de prejudicar não seja expressa, é necessário também ter a certeza de que o erro em que se induz aqueles a quem se fala não poderá prejudicá-los a eles nem a ninguém, seja de que maneira for. É raro e difícil ter-se essa certeza e, por isso, é difícil e raro que uma mentira seja perfeitamente inocente.
Jean-Jacques Rousseau, in Os devaneios do caminhante solitário

Contrabandista


Batia nos noventa anos o corpo magro mas sempre teso do Jango Jorge, um que foi capitão duma maloca de contrabandistas que fez cancha nos banhados do Ibirocaí.
Esse gaúcho desabotinado levou a existência inteira a cruzar os campos da fronteira: à luz do sol, no desmaiado da lua, na escuridão das noites, na cerração das madrugadas...; ainda que chovesse reiúnos acolherados ou que ventasse como por alma de padre, nunca errou vau, nunca perdeu atalho, nunca desandou cruzada!...
Conhecia as querências, pelo faro: aqui era o cheiro do açouta-cavalo florescido, lá o dos trevais, o das guabirobas rasteiras, do capim-limão; pelo ouvido: aqui, cancha de graxains, lá os pastos que ensurdecem ou estalam no casco do cavalo; adiante, o chape-chape, noutro ponto, o areão. Até pelo gosto ele dizia a parada, porque sabia onde estavam águas salobres e águas leves, com sabor de barro ou sabendo a limo.
Tinha vindo das guerras do outro tempo; foi um dos que peleou na batalha de Ituzaingo; foi do esquadrão do general José de Abreu e sempre que falava do Anjo da Vitória ainda tirava o chapéu, numa braçada larga, como se cumprimentasse alguém de muito respeito, numa distância muito longe.
Foi sempre um gaúcho quebralhão, e despilchado sempre, por ser muito de mãos abertas.
Se numa mesa de primeira ganhava uma ponchada de balastracas, reunia a gurizada da casa, fazia — pi! pi! pi! pi! — como pra galinhas e semeava as moedas, rindo-se do formigueiro que a miuçalha formava, catando as pratas no terreiro.
Gostava de sentar um laçaço num cachorro, mas desses laçaços de apanhar a paleta à virilha, e puxado a valer, tanto, que o bicho que o tomava, ficando entupido de dor, e lombeando-se, depois de disparar um pouco é que gritava, num — caim! caim! caim! — de desespero.
Outras vezes dava-lhe para armar uma jantarola, e sobre o fim do festo, quando já estava tudo meio entropigaitado, puxava por uma ponta da toalha e lá vinha, de tirão seco, toda a traquitanda dos pratos e copos e garrafas e restos de comidas e caldas dos doces!...
Depois garganteava a chuspa e largava as onças pras unhas do bolicheiro, que aproveitava o vento e le echaba cuentas degran capitãn... Era um pagodista!
Aqui há poucos anos — coitado — pousei no arranchamento dele. Casado ou doutro jeito, estava afamilhado. Não nos víamos desde muito tempo.
A dona da casa era uma mulher mocetona ainda, bem parecida e mui prazenteira; de filhos, uns três matalotes já emplumados e uma mocinha — pro caso, uma moça —, que era o — santo-antoninho-onde-te-porei! — daquela gente toda.
E era mesmo uma formosura; e prendada, mui habilidosa; tinha andado na escola e sabia botar os vestidos esquisitos das cidadãs da vila. E noiva, casadeira, já era.
E deu o caso, que quando eu pousei, foi justo pelas vésperas do casamento; estavam esperando o noivo e o resto do enxoval dela. O noivo chegou no outro dia, grande alegria; começaram os aprontamentos, e como me convidaram com gosto, fiquei pro festo.
O Jango Jorge saiu na madrugada seguinte, para ir buscar o tal enxoval da filha.
Aonde, não sei; parecia-me que aquilo devia ser feito em casa, à moda antiga, mas, como cada um manda no que é seu...
Fiquei verdeando, à espera, e fui dando um ajutório na matança dos leitões e no tiramento dos assados com couro.
Nesta terra do Rio Grande sempre se contrabandeou, desde em antes da tomada das Missões.
Naqueles tempos o que se fazia era sem malícia, e mais por divertir e acoquinar as guardas do inimigo: uma partida de guascas montava a cavalo, entrava na Banda Oriental e arrebanhava uma ponta grande de eguariços, abanava o poncho e vinha a meia-rédea; apartava-se a potrada e largava-se o resto; os de lá faziam conosco a mesma cousa; depois era com gados, que se tocava a trote e galope, abandonando os assoleanos.
Isto se fazia por despique dos espanhóis e eles se pagavam desquitando-se do mesmo jeito.
Só se cuidava de negacear as guardas do Cerro Largo, em Santa Tecla, no Haedo... O mais, era várzea!
Depois veio a guerra das Missões; o governo começou a dar sesmarias e uns quantíssimos pesados foram-se arranchando por essas campanhas desertas. E cada um tinha que ser um rei pequeno... e aguentar-se com as balas, as lunares e os chifarotes que tinha em casa!...
Foi o tempo do manda-quem-pode!... E foi o tempo que o gaúcho, o seu cavalo e o seu facão, sozinhos, conquistaram e defenderam estes pagos!...
Quem governava aqui o continente era um chefe que se chamava o capitão-general; ele dava as sesmarias mas não garantia o pelego dos sesmeiros...
Vancê tome tenência e vá vendo como as cousas, por si mesmas, se explicam.
Naquela era, a pólvora era do el-rei nosso senhor e só por sua licença é que algum particular graúdo podia ter em casa um polvarim... Também só na vila de Porto Alegre é que havia baralhos de jogar, que eram feitos só na fábrica do rei nosso senhor, e havia fiscal, sim, senhor, das cartas de jogar, e ninguém podia comprar senão dessas!
Por esses tempos antigos também o tal rei nosso senhor mandou botar pra fora os ourives da vila do Rio Grande e acabar com os lavrantes e prendistas dos outros lugares desta terra, só pra dar flux aos retnois...
Agora imagine vancê se a gente lá de dentro podia andar com tantas etiquetas e pedindo louvado pra se defender, pra se divertir e pra luxar!... O tal rei nosso senhor não se enxergava, mesmo!... E logo com quem!... Com a gauchada!...
Vai então, os estancieiros iam em pessoa ou mandavam ao outro lado, nos espanhóis, buscar pólvora e balas, pras pederneiras, cartas de jogo e prendas de ouro pras mulheres e preparos de prata pros arreios...; e ninguém pagava dízimos dessas cousas.
Às vezes lá voava pelos ares um cargueiro, com cangalhas e tudo, numa explosão de pólvora; doutras uma partilha de milicianos saía de atravessado e tomava conta de tudo, a couce d’arma: isto foi ensinando a escaramuçar com os golas-de-couro.
Nesse serviço foram-se aficionando alguns gaúchos: recebiam as encomendas e pra aproveitar a monção e não ir com os cargueiros debalde, levavam baeta, que vinha do reino, e fumo em corda, que vinha da Bahia, e algum porrão de canha. E faziam trocas, de elas por elas, quase. Os paisanos das duas terras brigavam, mas os mercadores sempre se entendiam...
Isto veio mais ou menos assim até a guerra dos Farrapos; depois vieram as califórnias do Chico Pedro; depois a guerra do Rosas.
Aí inundou-se a fronteira da província de espanhóis e gringos emigrados. A cousa então mudou de figura. A estrangeirada era mitrada, na regra, e foi quem ensinou a gente de cá a mergulhar e ficar de cabeça enxuta...; entrou nos homens a sedução de ganhar barato: bastava ser campeiro e destorcido. Depois, andava-se empandilhado, bem armado; podia-se às vezes dar um vareio nos milicos, ajustar contas com algum devedor de desaforos, aporrear algum subdelegado abelhudo...
Não se lidava com papéis nem contas de cousas: era só levantar os volumes, encangalhar, tocar e entregar!... Quanta gauchagem leviana aparecia, encostava-se.
Rompeu a guerra do Paraguai. O dinheiro do Brasil ficou muito caro: uma onça de ouro, que corria por trinta e dois, chegou a valer quarenta e seis mil-réis!... Imagine o que a estrangeirada bolou nas contas!...
Começou-se a cargueirear de um tudo: panos, águas de cheiro, armas, minigâncias, remédios, o diabo a quatro!... Era só pedir por boca! Apareceram também os mascates de campanha, com baús encangalhados e canastras, que passavam pra lá vazios e voltavam cheios, desovar aqui...
Polícia pouca, fronteira aberta, direitos de levar couro e cabelo e nas coletarias umas papeladas cheias de benzeduras e rabioscas... Ora... ora!... Passar bem, paisano!... A semente grelou e está a árvore ramalhuda, que vancê sabe, do contrabando de hoje.
O Jango Jorge foi maioral nesses estropícios. Desde moço. Até a hora da morte. Eu vi.
Como disse, na madrugada véspera do casamento o Jango Jorge saiu para ir buscar o enxoval da filha. Passou o dia; passou a noite.
No outro dia, que era o do casamento, até de tarde, nada. Havia na casa uma gentama convidada; da vila, vizinhos, os padrinhos, autoridades, moçada. Havia de se dançar três dias!... Corria o amargo e copinhos de licor de butiá.
Roncavam cordeonas no fogão, violas na ramada, uma caixa de música na sala.
Quase ao entrar do sol a mesa estava posta, vergando ao peso dos pratos enfeitados.
A dona da casa, por certo traquejada nessas bolandinas do marido, estava sossegada, ao menos ao parecer.
Às vezes mandava um dos filhos ver se o pai aparecia, na volta da estrada, encoberta por uma restinga fechada de arvoredo.
Surgiu dum quarto o noivo, todo no trinque, de colarinho duro e casaco de rabo. Houve caçoadas, ditérios, elogios.
Só faltava a noiva; mas essa não podia aparecer, por falta do seu vestido branco, dos seus sapatos brancos, do seu véu branco, das suas flores de laranjeira, que o pai fora buscar e ainda não trouxera. As moças riam-se; as senhoras velhas cochichavam. Entardeceu.
Nisto correu voz que a noiva estava chorando: fizemos uma algazarra e ela — tão boazinha! — veio à porta do quarto, bem penteada, ainda num vestidinho de chita de andar em casa, e pôs-se a rir pra nós, pra mostrar que estava contente.
A rir, sim, rindo na boca, mas também a chorar lágrimas grandes, que rolavam devagar nos olhos pestanudos...
E rindo e chorando estava, sem saber por quê... sem saber por que, rindo e chorando, quando alguém gritou do terreiro: — Aí vem o Jango Jorge, com mais gente!...
Foi um vozerio geral; a moça porém ficou, como estava, no quadro da porta, rindo e chorando, cada vez menos sem saber por quê... pois o pai estava chegando e o seu vestido branco, o seu véu, as suas flores de noiva... Era já fusco-fusco. Pegaram a acender as luzes.
E nesse mesmo tempo parava no terreiro a comitiva; mas num silêncio, tudo.
E o mesmo silêncio foi fechando todas as bocas e abrindo todos os olhos.
Então vimos os da comitiva descerem de um cavalo o corpo entregue de um homem, ainda de pala enfiado...
Ninguém perguntou nada, ninguém informou de nada; todos entenderam tudo...; que a festa estava acabada e a tristeza começada...
Levou-se o corpo pra sala da mesa, para o sofá enfeitado, que ia ser o trono dos noivos. Então um dos chegados disse:
A guarda nos deu em cima... tomou os cargueiros... E mataram o capitão, porque ele avançou sozinho pra mula ponteira e suspendeu um pacote que vinha solto.., e ainda o amarrou no corpo... Aí foi que o crivaram de balas... parado... Os ordinários!... Tivemos que brigar, pra tomar o corpo!
A sia-dona mãe da noiva levantou o balandrau do Jango Jorge e desamarrou o embrulho; abriu-o.
Era o vestido branco da filha, os sapatos brancos, o véu branco, as flores de laranjeira...
Tudo numa plastada de sangue... tudo manchado de vermelho, toda a alvura daquelas cousas bonitas como que bordada de cobrado, num padrão esquisito, de feitios estrambólicos... como flores de cardo solferim esmagadas a casco de bagual!...
Então rompeu o choro na casa toda.
João Simões Lopes Neto, in Contos gauchescos