Paris,
17 de fevereiro de 1909
Prezadíssimo
Senhor,
Sua
carta alcançou-me apenas há poucos dias. Quero agradecer-lhe a
grande e amável confiança. Pouco mais posso fazer. Não posso
entrar em considerações acerca da feição de seus versos, pois sou
alheio a toda e qualquer intenção crítica. Não há nada menos
apropriado para tocar numa obra de arte do que palavras de crítica,
que sempre resultam em mal-entendidos mais ou menos felizes. As
coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto
se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é
inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca
pisou. Menos suscetíveis de expressão do que qualquer outra coisa
são as obras de arte, - seres misteriosos cuja vida perdura, ao lado
da nossa efêmera.
Depois
de feito este reparo, dir-lhe-ei ainda que seus versos não possuem
feição própria, somente acenos discretos e velados de
personalidade. (...) Pergunta se os seus versos são bons. Pergunta-o
a mim, depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a
periódicos, compara-os com outras poesias e inquieta-se quando suas
tentativas são recusadas por um ou outro redator. Pois bem - usando
da licença que me deu de aconselhá-lo - peço-lhe que deixe tudo
isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos
deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, -
ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo.
Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas
raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si
mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo:
pergunte a sim mesmo na hora mais tranquila de sua noite: “Sou
mesmo forçado a escrever?” Escave dentro de si uma resposta
profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta
severa por um forte e simples “sou”, então construa a sua vida
de acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais
indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho de
tal pressão. Aproxime-se então da natureza. Depois procure, como se
fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. Não
escreva poesias de amor. Evite de início de formas usuais e
demasiado comuns: são essas as mais difíceis, pois precisa-se de
uma força grande e amadurecida para se produzir algo de pessoal num
domínio em que sobram tradições boas, algumas brilhantes. Eis por
que deve fugir dos motivos gerais para aqueles que a sua própria
existência cotidiana lhe oferece; relate suas mágoas e seus
desejos, seus pensamentos passageiros, sua fé em qualquer beleza -
relate tudo isto com íntima e humilde sinceridade. Utilize, para se
exprimir, as coisas de seu ambiente, as imagens de seus sonhos e os
objetos de suas lembranças. Se a própria existência cotidiana lhe
parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não
é bastante poeta para extrair as suas riquezas. Para o criador, com
efeito, não há pobreza nem lugar mesquinho e indiferente. Mesmo que
se encontrasse numa prisão, cujas paredes impedissem todos os ruídos
do mundo de chegar aos seus ouvidos, não lhe ficaria sempre sua
infância, essa esplêndida e régia riqueza, esse tesouro de
recordações? Volte a atenção para ela. Procure soerguer as
sensações submersas nesse longínquo passado: sua personalidade há
de reforçar-se, sua solidão há de alargar-se e transformar-se numa
habitação entre lusco e fusco diante da qual o ruído dos outros
passa longe, sem nela penetrar. Se depois desta volta para dentro,
deste ensimesmar-se, brotarem versos, não mais pensará em perguntar
seja a quem for se são bons. Nem tão pouco tentará interessar as
revistas por esses seus trabalhos, pois há de ver neles sua querida
propriedade natural, um pedaço e uma voz de sua vida. Uma obra de
arte é boa quando nasceu por necessidade. Neste caráter de origem
está o seu critério, - o único existente. Também, meu prezado
senhor, não lhe posso dar outro conselho fora deste: entrar em si e
examinar as profundidades de onde jorra a sua vida; na fonte desta é
que encontrará a resposta à questão de saber se deve criar.
Aceite-a tal com se lhe apresentar à primeira vista sem procurar
interpretá-la. Talvez venha a significar que o senhor é chamado a
ser um artista. Nesse caso aceite o destino e carregue-o com seu peso
e sua grandeza, sem nunca se preocupar com recompensa que possa vir
de fora. O criador, com efeito, deve ser um mundo para si mesmo e
encontrar em si e nessa natureza a que se aliou.
Mas
talvez se dê o caso de, após essa descida em si mesmo e em seu
âmago solitário, ter o senhor de renunciar a se tornar poeta.
(Basta, como já disse, sentir que se poderia viver sem escrever para
não mais se ter o direito de fazê-lo). Mesmo assim, o exame de
consciência que lhe peço não terá sido inútil. Sua vida, a
partir desse momento, há de encontrar caminhos próprios. Que sejam
bons, ricos e largos é o que lhe desejo, muito mais do que lhe posso
exprimir.
Que
mais lhe devo dizer? Parece-me que tudo foi acentuado segundo
convinha. Afinal de contas, queria apenas sugerir-lhe que se deixasse
chegar com discrição e gravidade ao termo de sua evolução. Nada a
poderia perturbar mais do que olhar para fora e aguardar de fora
respostas e perguntas a que talvez somente seu sentimento mais íntimo
possa responder na hora mais silenciosa.
(...)
Restituo-lhe
ao mesmo tempo os versos que me veio confiar amigavelmente.
Agradeço-lhe mais uma vez a grandeza e a cordialidade de sua
confiança. Procurei por meio desta resposta sincera, feita o melhor
que pude, tornar-me um pouco mais digno dela do que realmente sou, em
minha qualidade de estranho.
Com
todo o devotamento e toda a simpatia,
Rainer
Maria Rilke
Rainer
Maria Rilke, em Cartas a um jovem poeta (tradução
de Paulo Ronái)
Nenhum comentário:
Postar um comentário