O
realismo, no sentido estrito, foi um método para conquistar a
realidade para o romance. Toda a realidade, pois era importante nada
excluir dela — nem em favor de convenções estéticas, nem de
convenções morais burguesas. Essa era a realidade tal como a viam
alguns espíritos abertos e sem preconceitos do século XIX. Mas já
então não viam tudo, o que, aliás, lhes foi devidamente censurado
por aqueles seus contemporâneos que caprichosamente persistiam em
exercícios outros, e aparentemente marginais. Mas, mesmo que
possamos hoje admitir com convicção que os poucos representantes
verdadeiramente significativos dentre os realistas alcançaram
realmente seu objetivo; que conseguiram abarcar toda a sua realidade
para o romance; que sua época foi mostrada, sem sobras, em suas
obras — o que significaria isso para nós? Poderiam aqueles dentre
nós que buscam a mesma meta — mas como homens do nosso tempo — e
se veem como realistas modernos servir-se desses mesmos métodos?
Pressentimos
já qual será a resposta a essa questão, mas, antes de enunciá-la,
cabe refletir sobre o que foi feito da realidade de então. Ela se
modificou em tão grande escala que mesmo uma noção preliminar
desta nos deixa já completamente perplexos. Uma tentativa de dominar
essa perplexidade leva-nos, penso eu, a distinguir três aspectos
essenciais dessa mudança. Há uma realidade crescente e uma
realidade mais exata; em terceiro lugar, há a realidade do
devir.
É
fácil perceber o que se quer dizer com o primeiro desses aspectos,
ou seja, com a realidade crescente: há aqui muito mais
coisas, não apenas quantitativamente (mais seres humanos e objetos);
mas há infinitamente mais coisas também sob o aspecto qualitativo.
O Velho, o Novo e o Outro afluem de todos os lados. O Velho: um
número cada vez maior de culturas passadas é desenterrado; história
e pré-história recuam cada vez mais no tempo. Uma arte antiga, de
uma perfeição enigmática, tirou-nos para sempre a altivez com
relação à nossa própria arte. A terra volta a ser povoada com
seus mortos mais antigos. Eles ressuscitaram por meio de suas
ossadas, seus utensílios, suas pinturas rupestres, e vivem agora em
nosso imaginário como os cartagineses e egípcios viveram no
imaginário dos homens do século XIX. O Novo: muitos de nós
nasceram antes que o homem pudesse voar, e agora com certeza já
fizeram sua viagem a Viena de avião. Alguns dos mais jovens entre
nós serão ainda mandados à lua como turistas, e se envergonharão
talvez, após o seu regresso, de publicar uma descrição sobre algo
tão banal — assim como agora me envergonho de enumerar outras
“novidades”. Na minha infância, tais novidades surgiam ainda
como milagres únicos: minha primeira lâmpada elétrica, minha
primeira conversa telefônica. Hoje, as novidades nos rodeiam aos
milhares, como moscas.
Além
do Velho e do Novo, mencionei ainda o Outro, que aflui de todos os
lugares: as cidades estrangeiras mas de fácil acesso, os países e
continentes, a segunda língua, que cada um aprende paralelamente à
língua materna (e muitos aprendem uma terceira e mesmo uma quarta
línguas). Há também a investigação rigorosa de culturas
estranhas, as exposições de sua arte, as traduções de obras de
sua literatura; a investigação de povos primitivos ainda
existentes: seu modo de vida material, a organização de sua
sociedade, as formas que assumem sua crença e seus ritos, seus
mitos. Aquilo que existe de completamente Outro, como as ricas e
instigantes descobertas dos etnólogos, é incomensurável e não
pode de forma alguma — como em geral se assumia antigamente, e como
alguns ainda hoje gostariam de assumir — ser reduzida a uns poucos
achados. Para mim, pessoalmente, esse crescimento da realidade é o
mais significativo, porque sua apropriação demanda mais esforço
que a apropriação do banalmente Novo, evidente a todos; mas,
talvez, também porque ele reduz saudavelmente nossa altivez, que se
deixa insuflar indiscriminadamente com o Novo. Com efeito,
reconhece-se, entre outras coisas, que tudo já fora preconcebido nos
mitos: o que hoje, com desembaraço, tornamos realidade são ideias e
desejos antiquíssimos. No entanto, no que toca nossa capacidade de
inventar novos desejos e mitos, estamos deploravelmente mal servidos.
Vasculhamos os antigos, como que a remoer ruidosamente preces, sem ao
menos sabermos o que essas preces mecânicas significam. Essa é uma
experiência que deveria fazer-nos refletir, nós, poetas, que como
tais temos a incumbência, sobretudo, de inventar o Novo. Finalmente,
não quero deixar de mencionar ainda que o Outro, que só
agora experimentamos seriamente, não se refere apenas aos seres
humanos. A vida, tal como foi sempre a dos animais, ganha para nós
um outro sentido. O conhecimento crescente de seus ritos e jogos
demonstra, por exemplo, que eles — a quem, três séculos atrás,
declaramos oficialmente máquinas — possuem algo como uma
civilidade que pode ser comparada à nossa.
A
ampliação de nossa época, sua realidade crescente, a uma
aceleração para a qual não se pode antever meta alguma, é também
a causa de sua confusão.
Elias
Canetti, in A consciência das palavras
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