quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Poças d'água

As poças d’água na calçada esburacada — não, isto não é um protesto: é, a seu modo, uma espécie de poema, que por sinal já saiu rimando... Fosse uma reclamação, eu a publicaria no “Correio do Leitor”, seção competente onde cada um exerce o direito da sua opinião privada sobre a coisa pública. As poças d’água na calçada, como eu ia dizendo, são, em meio ao tráfego congesto, o único esporte que resta ao viandante na contingência de lhes saltar por cima ou devidamente contorná-las. Há velhinhas — quem diria? — que sabem transpô-las com infinita graça, equilibrando no alto a sombrinha como a moça do arame no circo. Há graves senhores pançudos que o fazem cuidadosamente, eficientemente, com uma perfeição que justifica o seu status. E há também os sujeitos, nada pançudos, nada graves, antes pelo contrário, e que nos fazem lembrar os chamados “saltapocinhas” do Segundo Império. Quanto às crianças, estas adoram as poças d’água... Nem é necessário alegar, a seu respeito, uma compulsiva comunhão com a natureza.
Comunhão com a natureza tive-a eu, quando uma noite caí de borco ao praticar esse esporte e fui parar no pronto-socorro, de nariz quebrado. A moça otorrino que gentilmente me atendeu mostrou-se preocupada com o meu vômer, que eu não sabia o que era. Explicou-me que se tratava do osso que dividia as fossas nasais. Quanto aos outros, os da ponta do nariz, eram os ditais e, se fossem os vitimados, não tinha importância, pois acabariam acomodando-se por si mesmos.
Como vês, leitor amigo, a vida é assim: caindo e aprendendo... E, caso me ocorram outros acidentes, acabarei enfim sabendo anatomia, matéria que faz muito tempo que não estudei nos bancos escolares.
Mas o que me deixou mesmo mais eufórico foi ao ler no boletim clínico que toda aquela sangueira nas ventas tinha o nome de epistaxe. Epistaxe, meu Deus! Até parece uma figura de retórica... 
 
As poças d’água são um mundo mágico
Um céu quebrado no chão
Onde em vez das tristes estrelas
Brilham os letreiros de gás néon.
Mário Quintana, in A vaca e o hipogrifo

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