Era
domingo e o navio prosseguia viagem. Os passageiros iam sendo convocados para a
missa de bordo.
-
Vamos à missa? convidou Ovalle.
O
passageiro a seu lado no convés recusou-se com inesperada veemência:
-
Missa, eu? Deus me livre de missa.
-
Não entendo - tornou Ovalle, intrigado:
-
O senhor pede justamente a Deus que o livre da missa?
-
No meu tempo de menino eu ia à missa. Mas deixei de ir por causa de um episódio
no colégio interno, há mais de trinta anos. Colégio de padre -- isso explica
tudo, o senhor não acha?
Ele
achou que não explicava nada e pediu ao homem que contasse.
-
Pois olha, vou lhe contar: imagine o senhor que havia no colégio um barbeiro,
para fazer a barba dos padres e o cabelo dos alunos. Vai um dia o barbeiro me
seduz com a ideia de furtar o vinho de missa, que era guardado numa adega. Me
ensinou um jeito de entrar na adega - e um dia eu fiz uma incursão ao tonel de
vinho. Mas fui infeliz: deixei a torneira pingando, descobriram a travessura e
no dia seguinte o padre-diretor reunia todos os alunos do colégio, intimando o
culpado a se denunciar. Ia haver comunhão geral e quem comungasse com tão
horrenda culpa mereceria danação eterna. Está visto que não me denunciei:
busquei um confessor, tendo o cuidado de escolher um padre que gozava entre nós
da fama de ser mais camarada: "Padre, como é que eu saio desta? Eu pequei,
fui eu que bebi o vinho. Mas se deixar de comungar, o padre-diretor descobre
tudo, vou ser castigado." Ele então me tranquilizou, invocando o segredo
confessional, me absolveu e pude receber a comunhão. Pois muito bem: no mesmo
dia todo mundo sabia que tinha sido eu e eu era suspenso do colégio. O homem
respirou fundo e acrescentou, irritado:
-
Como é que o senhor quer que eu ainda tenha fé nessa espécie de gente?
Ovalle
ouvia calado, os olhos perdidos na amplidão do mar. Sem se voltar para o outro,
comentou:
-
O senhor, certamente, achou que o confessor saiu dali e foi direitinho contar
ao diretor.
-
Isso mesmo. Foi o que aconteceu.
-
O vinho era bom?
-
Como?
-
Pergunto se o senhor achou o vinho bom.
O
homem sorriu, intrigado:
-
Creio que sim. Tanto tempo, não me lembro mais... Mas devia ser: vinho de
missa!
Então
Ovalle se voltou para o homem, ergueu o punho com veemência:
-
E o senhor, depois de beber o seu bom vinho de missa, me passa trinta anos
acreditando nessa asneira? O homem o olhava, boquiaberto:
-
Asneira? Que asneira?
-
Será possível que ainda não percebeu? Foi o barbeiro, idiota!
-
O barbeiro? - balbuciou o outro:
-
É verdade... O barbeiro! Como é que na época não me ocorreu...
- Vamos para a missa - ordenou Ovalle,
tomando-o pelo braço.
Fernando
Sabino, in A mulher do vizinho
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