Aquela
Mulher não era má, de todo. Pelas lágrimas fortes que esquentavam meu rosto e
salgavam minha boca, mas que já frias já rolavam. Diadorim, Diadorim, oh, ah,
meus buritizais levados de verdes... Buriti, do ouro da flor... E subiram as
escadas com ele, em cima de mesa foi posto. Diadorim, Diadorim – será que
amereci só por metade? Com meus molhados olhos não olhei bem – como que garças
voavam... E que fossem campear velas ou tocha de cera, e acender altas
fogueiras de boa lenha, em volta do escuro do arraial...
Sufoquei, numa estrangulação de dó.
Constante o que a Mulher disse: carecia de se lavar e vestir o corpo. Piedade,
como que ela mesma, embebendo toalha, limpou as faces de Diadorim, casca de tão
grosso sangue, repisado. E a beleza dele permanecia, só permanecia, mais
impossivelmente. Mesmo como jazendo assim, nesse pó de palidez, feito a coisa e
máscara, sem gota nenhuma. Os olhos dele ficados para a gente ver. A cara
economizada, a boca secada. os cabelos com marca de duráveis... Não escrevo,
não falo! – para assim não ser: não foi, não é, não fica sendo! Diadorim...
Eu dizendo que a Mulher ia lavar o corpo
dele. Ela rezava rezas da Bahia. Mandou todo o mundo sair. Eu fiquei. E a
Mulher abanou brandamente a cabeça, consoante deu um suspiro simples. Ela me mal-entendia.
Não me mostrou de propósito o corpo. E disse...
Diadorim – nu de tudo. E ela disse:
– "A Deus dada. Pobrezinha..."
E disse. Eu conheci! Como em todo o tempo
antes eu não contei ao senhor – e mercê peço: – mas para o senhor divulgar
comigo, a par, justo o travo de tanto segredo, sabendo somente no átimo em que
eu também só soube... Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita...
Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa. A coice d'arma, de coronha...
Ela era. Tal que assim se desencantava,
num encanto tão terrível; e levantei mão para me benzer – mas com ela tapei foi
um soluçar, e enxuguei as lágrimas maiores. Uivei. Diadorim! Diadorim era uma
mulher. Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio Urucúia, como
eu solucei meu desespero.
O senhor não repare. Demore, que eu
conto. A vida da gente nunca tem termo real.
Eu estendi as mãos para tocar naquele
corpo, e estremeci, retirando as mãos para trás, incendiável; abaixei meus
olhos. E a Mulher estendeu a toalha, recobrindo as partes. Mas aqueles olhos eu
beijei, e as faces, a boca. Adivinhava os cabelos. Cabelos que cortou com
tesoura de prata... Cabelos que, no só ser, haviam de dar para baixo da
cintura... E eu não sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo:
– "Meu amor!..."
Foi assim. eu tinha me debruçado na
janela, para poder não presenciar o mundo.
A Mulher lavou o corpo, que revestiu com
a melhor peça de roupa que ela tirou da trouxa dela mesma. No peito, entre as
mãos postas, ainda depositou o cordão com o escapulário que tinha sido meu, e
um rosário, de coquinhos de ouricuri e contas de lágrimas-de-nossa-senhora. Só
faltou – ah! – a pedra-de-ametista, tanto trazida... O Quipes veio, com as
velas, que acendemos em quadral. Essas coisas se passavam perto de mim. Como
tinham ido abrir a cova, cristãmente. Pelo repugnar e revoltar, primeiro eu
quis: – "Enterrem separado dos outros, num aliso de vereda, adonde ninguém
ache, nunca se saiba..."Tal que disse, doidava. Recaí no marcar do sofrer.
Em real me vi, que com a Mulher junto abraçado, nós dois chorávamos extenso. E
todos meus jagunços decididos choravam. Daí, fomos, e em sepultura deixamos, no
cemitério do Paredão enterrada, em campo do sertão.
Ela tinha amor em mim.
E aquela era a hora do mais tarde. O céu
vem abaixando. narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez até ache mais
do que eu, a minha verdade. Fim que foi.
Aqui a estória se acabou.
Aqui, a estória acabada.
Aqui, a estória acaba.
Resoluto sí de lá, em galope, doidável.
Mas, antes, reparti o dinheiro, que tinha, retirei o cinturão-cartucheiras – aí
ultimei o jagunço Riobaldo! Disse adeus para todos, sempremente.
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas