“Sendo
variável o nosso ‘eu’, que é dependente das circunstâncias, um homem jamais
deve supor que conhece outro. Pode somente afirmar que, não variando as
circunstâncias, o procedimento do indivíduo observado não mudará. O chefe de
escritório que já redige há vinte anos relatórios honestos, continuará sem
dúvida a redigi-los com a mesma honestidade, mas cumpre não o afirmar em
demasia. Se surgirem novas circunstâncias, se uma paixão forte lhe invadir a
mente, se um perigo lhe ameaçar o lar, o insignificante burocrata poderá
tornar-se um celerado ou um herói. As grandes oscilações da personalidade
observam-se quase exclusivamente na esfera dos sentimentos. Na da inteligência,
elas são muito fracas. Um imbecil permanecerá sempre imbecil.
As
possíveis variações da personalidade, que impedem de conhecermos a fundo os
nossos semelhantes, também obstam a que cada qual se conheça a si próprio. O
adágio ‘Nosce te ipsum’ dos antigos filósofos constitui um conselho
irrealizável. O ‘eu’ exteriorizado representa habitualmente uma personalidade
de empréstimo, mentirosa. Assim é, não só porque atribuímos a nós mesmos muitas
qualidades e não reconhecemos absolutamente os nossos defeitos, como também
porque o nosso ‘eu’ contém uma pequena porção de elementos conscientes,
conhecíveis em rigor, e, em grande parte, elementos inconscientes, quase
inacessíveis à observação.
O
único meio de descobrir o nosso ‘eu’ real é, já o dissemos, a ação. Cada qual
só se conhece um pouco depois de ter observado a sua maneira de agir em
circunstâncias determinadas. Pretender adivinhar como procederemos numa
situação dada é muito quimérico. O marechal Ney, quando jurou a Luís XVIII que
lhe traria Napoleão numa gaiola de ferro, estava de muito boa fé, mas não se
conhecia; um simples olhar do Imperador bastou para que mudasse a sua
resolução; o infortunado marechal pagou com a vida a ignorância da sua própria
personalidade. Se estivesse mais familiarizado com as leis da psicologia, Luís
XVIII ter-lhe-ia provavelmente perdoado.
As
teorias expostas nesta obra relativamente ao caráter podem, por vezes, parecer
contraditórias. De um lado, com efeito, insistimos na fixidez dos sentimentos
que formam o carácter e, de outro, mostramos as variações possíveis da
personalidade.
Essas
oposições irão dissipar-se rememorando os pontos seguintes:
1º. Os
carácteres formam-se a partir de um agregado de elementos afetivos
fundamentais, mais ou menos invariáveis, aos quais se juntam elementos
acessórios, facilmente mutáveis. Estes últimos correspondem às modificações que
a arte do criador aplica a uma espécie, sem modificar por isso os seus
carácteres essenciais;
2º. As espécies
psicológicas acham-se, como as espécies anatômicas, sob a estreita dependência
do meio. Devem adaptar-se a todas as mudanças desse meio e a ele, de facto, se
adaptam, quando essas transformações não são consideráveis em extremo nem
demasiadamente súbitas;
3º. Os mesmos
sentimentos podem oferecer a aparência de uma mudança quando se aplicam a
assuntos diferentes, sem que, entretanto, haja sofrido modificação na sua
natureza real. Tornando-se amor divino em certas conversões, o amor humano é um
sentimento que mudou de nome, mas não de natureza.
Todas
essas averiguações têm um interesse muito prático, porquanto se acham na
própria base de muitos problemas modernos importantes, principalmente o da
educação.
Observando
que a educação modifica a inteligência ou, pelo menos, a soma dos conhecimentos
individuais, concluiu-se que ela podia modificar igualmente os sentimentos. Era
esquecer por completo que os estados afetivos e intelectuais não apresentam uma
evolução paralela.
Quanto
mais se aprofunda o assunto, tanto mais firmemente se reconhece que a educação
e as instituições políticas desempenham um papel bastante fraco no destino dos
indivíduos e dos povos.
Essa doutrina, contrária, aliás, às
nossas crenças democráticas, parece, por vezes, contrariada também pelos fatos
observados em certos povos modernos, e é isso que sempre a impedirá de ser
facilmente admitida.
Gustave
Le Bon, in As Opiniões e as Crenças
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