segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Rondando os segredos de Guimarães Rosa


Aparece no segundo livro de João Guimarães Rosa uma árvore gigante, o Buriti-Grande, epônimo de uma fazenda e de um dos contos da coletânea, ponto de referência e sinal de demarcação, emblema e símbolo. “O Buriti-Grande ia para o céu – até setenta ou mais metros, roliço a prumo – inventando um abismo.”
Assim a personalidade singular do autor há de marcar a nossa paisagem literária. Ao caracterizar a personagem vegetal, está definindo uma das funções, talvez a mais importante, da própria arte.
Inventor de abismos, o autor de Corpo de baile, localiza-os em broncas almas de sertanejos, inseparavelmente ligadas à natureza ambiente, fechadas ao raciocínio, mas acessíveis a toda espécie de impulsos vagos, sonhos, premonições, crendices, vivendo a séculos de distância da nossa civilização urbana e niveladora. São almas ainda não estereotipadas pela rotina, com receptividade para o extraordinário e o milagre. O escritor enfrenta-as em geral num momento de crise, quando, acuadas pelo amor, pela doença ou pela morte, procuram desesperadamente tomar consciência de si mesmas e buscam o sentido de sua vida.
Esses abismos inventados dão reais calafrios. No fundo deles se vislumbram os grandes medos atávicos do homem, sua sede de amor e seu horror à solidão, seus vãos esforços de segurar o passado e dirigir o futuro.
Nas obras de Guimarães Rosa, tais sentimentos plasmam a mente de personagens marginais, imperfeitamente absorvidas pelo convívio social ou nada tocadas por ele: crianças, loucos, mendigos, cantadores, prostitutas, capangas, vaqueiros. Eles é que formam o corpo de baile num teatro em que não há separação entre palco e plateia. O autor e as personagens nunca são completamente distintos. Usam a mesma língua, a ponto que volta e meia aquele passa a palavra a estas sem que se note qualquer mudança de plano. Tal praxe não somente não conduz à limitação do registro das notações, mas, por um milagre de arte, confere-lhe amplitude raras vezes atingida em qualquer literatura.
É pela segunda vez que o autor dá um mergulho no mesmo universo. Dez anos depois do memorável êxito de Sagarana, espanta-nos com a fecundidade desse intervalo, que poderia ter enchido de publicações periódicas, pois as sete grandes novelas de Corpo de baile dariam perfeitamente outros tantos volumes. Mas Guimarães Rosa aceitou o risco de sair do cartaz por um decênio para não sacrificar a unidade do seu livro.
Insensível a conveniências editoriais, o escritor pouco se preocupa em ir ao encontro dos hábitos do público. Arremessa aos leitores, de uma só vez, uma suma inteira; lança-os, em vez de num caminho reto, num verdadeiro labirinto; e, se lhes dá algumas chaves – epígrafes tiradas de Plotino e Ruysbroeck, tão inesperadas no limiar de uma coleção de novelas regionais – deixa-os procurar as fechaduras a que elas se aplicam. E mesmo que eles tenham compreendido a unidade essencial do conjunto e a importância igual das diversas partes, mesmo que tenham percebido a razão de ser do título e a presença permanente de símbolos poéticos nessas narrativas telúricas, ainda terão de resolver inúmeros enigmas que se lhes armam a cada passo. Com estes a sagacidade do autor parece querer selecionar o seu público a fim de, depois, compensá-lo regiamente do esforço despendido.
É Ruskin quem fala dessa “reticência cruel no coração de homens sábios que lhes faz sempre esconder o seu pensamento mais profundo. Eles não no-lo comunicam sob forma de ajuda, mas sob forma de recompensa, e querem ficar certos de o merecermos antes de nos permitirem que o alcancemos”.Nos dois índices da obra, as partes desta são ora qualificadas de poemas, ora de contos e romances. Serão poemas, enquanto todas trazem significações subjacentes. A distinção entre conto e romance tampouco obedece ao critério habitual da extensão; antes corresponde a um grau maior ou menor de conteúdo lírico: ao subordinar os primeiros ao título de “parábase”, o autor, com esse termo da comédia grega, adverte-nos de que é neles que se deverá procurar a sua mensagem pessoal. Isto posto, ainda será mister decifrar essa mensagem.
Como os grandes poemas clássicos, Corpo de baile está cheio de segredos que só gradualmente se revelam ao olhar atento. A própria unidade da obra é um deles. Ela não é apenas geográfica e estilística, como parece à primeira vista. Conexões de temática, correspondências estruturais, efeitos de justaposição e oposição integram-na, mas os leitores têm de os descobrir um a um. Talvez ninguém consiga, nesse pormenor, desemaranhar totalmente o jogo complexo das intenções do autor – mas o que cada um desvendar será o suficiente para intensificar o prazer da peregrinação por esse mundo denso de novidades.
Outra barreira que o leitor tem de romper é a do estilo. Guimarães Rosa joga com toda a riqueza da língua popular de Minas, mas é fácil perceber que não se contenta com a simples reprodução. Aproveitando conscientemente os processos de derivação e as tendências sintáticas do povo, uns e outros frequentemente ainda nem registrados, cria uma língua pessoal, toda dele, de espantosa força expressiva, e que há de encantar os seus lexicógrafos. Obedecendo ora à exigência íntima da matização infinita, ora a um sensualismo brincalhão que se compraz em novas sonoridades, submete o idioma a uma atomização radical, da qual só encontraríamos precedentes em Joyce (“O mato – vozinha mansa – aeiouava.” “Dava-se no ar um visco, o asno de uma moemoência, de tudo que a mata e o brejão exalassem.” “Nos campos havia ‘frechechéu e tiroteio’; no alto, ‘o milmilhar das estrelas do sertão’”). A invenção de onomatopeias sem conta, a livre permutação de prefixos verbais, a atribuição de novos regimes, a ousada inversão das categorias gramaticais, a multiplicação das terminações afetivas, são algumas dessas fecundas arbitrariedades que se abonam mais de uma vez na prática de outras línguas, cujas reminiscências o poliglota nem sempre soube ou quis reprimir. A falta de separação entre personagens e autor faz que complicados conteúdos intelectuais venham a revestir-se de modismos populares e a cheirar a preciosismo (“Para ele, aproximar-se dali estava sendo talvez o repensado contra curso de uma dúvida, pelo azado desatinozinho que o destino quer”). Como quem vence uma aposta, o autor esconde, aqui e ali, nas meditações de seus sertanejos, um pensamento de Platão ou de Plotino (“Aquele bezerro carnara dava gastura, de se reparar, era um nojo, um defeito do mundo. Como se um erro tivesse falseado seu ser, contra a forma, que devia ser de molde para ele, a ideia para um bezerro belo: não podido pois ser realizado”). Mistura personalíssima e inimitável de artifício e espontaneidade, o estilo de Guimarães Rosa pede que se lhe dê um crédito de confiança para restituí-lo com juros.
Feita essa advertência ao leitor, deixemo-lo entrar no primeiro cenário do livro em “Campo geral”, um recanto oculto da roça, com seu emaranhado de conceitos, atos e ritos, costumes rudes e paixões selvagens. Por um achado notável, penetramos nele guiados por um menino de oito anos, nascido no próprio ambiente, e que o aceita com inteira naturalidade. Numa reprodução mágica da visão infantil, episódios insignificantes criam volume e acontecimentos trágicos se reduzem a meras impressões. Sob nossos olhos maravilhados, o menino Miguilim cresce, incorpora as lições das plantas e dos bichos, absorve a sabedoria do irmão menor, e vem-se desenvolvendo dia a dia, no meio dos segredos inquietantes do mundo dos adultos, mas impressionando-se sobretudo com milagres que só para ele existem: o papagaio pronunciando pela primeira vez o nome do irmão meses após a morte deste, um par de óculos dando à vida nova dimensão e sentido.
Esses milagres não são o privilégio das crianças. Adultos que ainda carregam consigo restos da alma infantil chegam a cruzá-los às vezes, e em circunstâncias das mais imprevistas. Daí, em “A estória de Lélio e Lina”, a inverossímil aventura do vaqueiro Lélio na fazenda do Pinhém, de onde ele sai raptando uma velha senhora que poderia ser sua mãe, e a quem só o ligam laços de simpatia. No tecido grosso e palpável de uma história toda real – com desfile de vaqueiros de diversos tipos, cenas da vida pastoril, as fases da adaptação de Lélio a seus novos camaradas, as suas experiências sexuais – o episódio feérico dessa extraordinária amizade entre a velha sábia e folgazã e o jovem pastor de imaginação quimérica se destaca sem nada grotesco ou absurdo, com uma naturalidade serena.
Como num pendant à atração espiritual que aproxima Lélio de dona Rosalina, o valentão Soropita, herói de “Dão-Lalalão”, arde numa paixão sombria, carnal, inextinguível, praticando desatinos, procurando atingir desvairadamente o cerne do próprio desejo. Apesar de uma porção de crimes na consciência, vive rico e estimado no lugarejo onde se recolheu, e gozaria de paz perfeita se não houvesse a ameaça constante de ressurgir o passado não dele, mas da mulher, antiga meretriz de Montes Claros, desencadeando ferozes ciúmes retroativos. O encontro de um velho amigo, a quem a seu pesar se sente compelido a exibir a felicidade, envolve-o num conflito dilacerador e o faz resvalar vertiginosamente rumo a um novo drama, evitado no último instante por um acaso. Mas sente-se que a história não acabou.
Tal sensação, temo-la também na última página de “Buriti”, a única narrativa em que pessoas de classe superior se envolvem na vida dos Gerais, e acabam subjugadas pelo sortilégio. Quatro personagens de inesquecível relevo – o fazendeiro, a filha, a nora, o vizinho – após os esforços desesperados de uma longa resistência se veem arrastados por sentimentos elementares e incontroláveis. A história, contada primeiro como reminiscência de um visitante, depois como experiência de uma das protagonistas, ganha extrema plasticidade pela mudança do ponto de vista.
Há em todos esses “romances” uma incontável população de comparsas, figuras excêntricas, esquisitões, perfeitamente individualizados, que lamento não poder sequer enumerar aqui, e que dão ao livro o colorido, o movimento e a graça grotesca de quadros de Breughel e de Cranach.
A linha simbólica é predominante nos “contos”, onde o enredo propriamente dito serve antes de acompanhamento. Assim em “Uma estória de amor”, em que se conta a festa de Manuelzão, chegado de menino pobre a encarregado de fazenda. Já no fim da vida, impelido pela vontade de se perpetuar, constrói ele uma capela e inaugura-a com um banquete. Em trilhos paralelos correm as duas ações: a exterior, constituída pela sequência da festa, a chegada dos convidados, o cerimonial do banquete; e a íntima, o embate de inquietações surdas no espírito frusto de Manuelzão, torturado por ideias de vida falha, solidão, morte próxima. As duas ações chegam a remate no eclodir inesperado, na boca de um velho mendigo, de uma epopeia, milagre cuja vaga intuição integra o sentido da festa e apaga os tristes símbolos da vida incompleta de Manuelzão: o riacho que secou, o cavour que ele almejou por toda a existência e que estava fora da moda quando, afinal, se achou em condições de adquiri-lo.
Em “O recado do morro”, testemunha-se a gênese de uma canção que se cristaliza imperceptível e acessoriamente no decorrer de uma expedição científica. Brotada de um germe caído no perturbado espírito de um louco, alimentada e desenvolvida pela colaboração ocasional de outros lunáticos, acaba nas mãos de um bardo popular que lhe dá forma e sentido. A viagem da comitiva e o nascimento da canção operam-se simultaneamente, e a conclusão desta prefigura o fim trágico daquela. Um recado infralógico da atmosfera e da paisagem transmuda-se em verso através da cooperação de uma sequela de anormais, de senso embotado, mas de sentidos apurados.
Deixei para o fim “Cara-de-Bronze”, o menor e o mais difícil dos três “contos”, em que se multiplicam as armadilhas e os contornos de uma história são apenas esboçados. Chegado à fazenda do Urubuquaquá, um forasteiro se esforça para compor, com os depoimentos fragmentários dos vaqueiros, o retrato do velho fazendeiro apelidado Cara-de-Bronze, o qual, doente recluso em seu quarto, administra a sua propriedade. Nenhuma das qualidades da personagem invisível – nem sequer o nome – deixa de provocar apreciações contraditórias, fazendo entrever em plano mais geral a impossibilidade de um conhecimento objetivo da realidade humana. Outro mistério que intriga ao enigmático Moimeichêgo (e ao leitor também) é a natureza da missão confiada por Cara-de-Bronze a um vaqueiro escolhido com cuidado, o qual volta à fazenda depois de prolongada ausência. De suas respostas às perguntas dos camaradas se depreende que a sua missão, cujo sentido ele intui sem poder defini-lo, consistiu em trazer ao moribundo paralítico uma multidão de observações aparentemente desconexas e frívolas de seu antigo mundo, elementos que lhe permitissem reconstruir para o seu próprio uso a realidade íntima do passado, uma visão poética do seu universo. O material reunido pelo emissário é de uma riqueza disparatada e barroca, transborda do texto da história e se espalha por uma série de notas.
Essa figura mal esboçada grava-se entre todas na alma do leitor: do mesmo modo que ela, o próprio autor, feiticeiro disfarçado em diplomata, em escritor, em homem de sociedade, encerrado entre as paredes da sua repartição, da sua casa, da sua classe, delega para o cenário de sua adolescência não um emissário, mas cem – a turba multicor das personagens de Corpo de baile – a fim de que lhe tragam os ingredientes indispensáveis à recomposição daquela paisagem. Já sabemos que, graças aos milagres constantes de uma memória excepcionalmente fecunda e criadora, elas se desincumbem a contento de sua difícil tarefa, a busca do tempo perdido, causa e fim de toda poesia verdadeira.

Paulo Rónai, em Rosa & Rónai: O universo de Guimarães Rosa por Paulo Rónai, seu maior decifrador

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