Aparece
no segundo livro de João Guimarães Rosa uma árvore gigante, o
Buriti-Grande, epônimo de uma fazenda e de um dos contos da
coletânea, ponto de referência e sinal de demarcação, emblema e
símbolo. “O Buriti-Grande ia para o céu – até setenta ou mais
metros, roliço a prumo – inventando um abismo.”
Assim
a personalidade singular do autor há de marcar a nossa paisagem
literária. Ao caracterizar a personagem vegetal, está definindo uma
das funções, talvez a mais importante, da própria arte.
Inventor
de abismos, o autor de Corpo de baile, localiza-os em broncas
almas de sertanejos, inseparavelmente ligadas à natureza ambiente,
fechadas ao raciocínio, mas acessíveis a toda espécie de impulsos
vagos, sonhos, premonições, crendices, vivendo a séculos de
distância da nossa civilização urbana e niveladora. São almas
ainda não estereotipadas pela rotina, com receptividade para o
extraordinário e o milagre. O escritor enfrenta-as em geral num
momento de crise, quando, acuadas pelo amor, pela doença ou pela
morte, procuram desesperadamente tomar consciência de si mesmas e
buscam o sentido de sua vida.
Esses
abismos inventados dão reais calafrios. No fundo deles se vislumbram
os grandes medos atávicos do homem, sua sede de amor e seu horror à
solidão, seus vãos esforços de segurar o passado e dirigir o
futuro.
Nas
obras de Guimarães Rosa, tais sentimentos plasmam a mente de
personagens marginais, imperfeitamente absorvidas pelo convívio
social ou nada tocadas por ele: crianças, loucos, mendigos,
cantadores, prostitutas, capangas, vaqueiros. Eles é que formam o
corpo de baile num teatro em que não há separação entre palco e
plateia. O autor e as personagens nunca são completamente distintos.
Usam a mesma língua, a ponto que volta e meia aquele passa a palavra
a estas sem que se note qualquer mudança de plano. Tal praxe não
somente não conduz à limitação do registro das notações, mas,
por um milagre de arte, confere-lhe amplitude raras vezes atingida em
qualquer literatura.
É
pela segunda vez que o autor dá um mergulho no mesmo universo. Dez
anos depois do memorável êxito de Sagarana, espanta-nos com
a fecundidade desse intervalo, que poderia ter enchido de publicações
periódicas, pois as sete grandes novelas de Corpo de baile
dariam perfeitamente outros tantos volumes. Mas Guimarães Rosa
aceitou o risco de sair do cartaz por um decênio para não
sacrificar a unidade do seu livro.
Insensível
a conveniências editoriais, o escritor pouco se preocupa em ir ao
encontro dos hábitos do público. Arremessa aos leitores, de uma só
vez, uma suma inteira; lança-os, em vez de num caminho reto, num
verdadeiro labirinto; e, se lhes dá algumas chaves – epígrafes
tiradas de Plotino e Ruysbroeck, tão inesperadas no limiar de uma
coleção de novelas regionais – deixa-os procurar as fechaduras a
que elas se aplicam. E mesmo que eles tenham compreendido a unidade
essencial do conjunto e a importância igual das diversas partes,
mesmo que tenham percebido a razão de ser do título e a presença
permanente de símbolos poéticos nessas narrativas telúricas, ainda
terão de resolver inúmeros enigmas que se lhes armam a cada passo.
Com estes a sagacidade do autor parece querer selecionar o seu
público a fim de, depois, compensá-lo regiamente do esforço
despendido.
É
Ruskin quem fala dessa “reticência cruel no coração de homens
sábios que lhes faz sempre esconder o seu pensamento mais profundo.
Eles não no-lo comunicam sob forma de ajuda, mas sob forma de
recompensa, e querem ficar certos de o merecermos antes de nos
permitirem que o alcancemos”.Nos dois índices da obra, as partes
desta são ora qualificadas de poemas, ora de contos e romances.
Serão poemas, enquanto todas trazem significações subjacentes. A
distinção entre conto e romance tampouco obedece ao critério
habitual da extensão; antes corresponde a um grau maior ou menor de
conteúdo lírico: ao subordinar os primeiros ao título de
“parábase”, o autor, com esse termo da comédia grega,
adverte-nos de que é neles que se deverá procurar a sua mensagem
pessoal. Isto posto, ainda será mister decifrar essa mensagem.
Como
os grandes poemas clássicos, Corpo de baile está cheio de
segredos que só gradualmente se revelam ao olhar atento. A própria
unidade da obra é um deles. Ela não é apenas geográfica e
estilística, como parece à primeira vista. Conexões de temática,
correspondências estruturais, efeitos de justaposição e oposição
integram-na, mas os leitores têm de os descobrir um a um. Talvez
ninguém consiga, nesse pormenor, desemaranhar totalmente o jogo
complexo das intenções do autor – mas o que cada um desvendar
será o suficiente para intensificar o prazer da peregrinação por
esse mundo denso de novidades.
Outra
barreira que o leitor tem de romper é a do estilo. Guimarães Rosa
joga com toda a riqueza da língua popular de Minas, mas é fácil
perceber que não se contenta com a simples reprodução.
Aproveitando conscientemente os processos de derivação e as
tendências sintáticas do povo, uns e outros frequentemente ainda
nem registrados, cria uma língua pessoal, toda dele, de espantosa
força expressiva, e que há de encantar os seus lexicógrafos.
Obedecendo ora à exigência íntima da matização infinita, ora a
um sensualismo brincalhão que se compraz em novas sonoridades,
submete o idioma a uma atomização radical, da qual só
encontraríamos precedentes em Joyce (“O mato – vozinha mansa –
aeiouava.” “Dava-se no ar um visco, o asno de uma moemoência, de
tudo que a mata e o brejão exalassem.” “Nos campos havia
‘frechechéu e tiroteio’; no alto, ‘o milmilhar das estrelas do
sertão’”). A invenção de onomatopeias sem conta, a livre
permutação de prefixos verbais, a atribuição de novos regimes, a
ousada inversão das categorias gramaticais, a multiplicação das
terminações afetivas, são algumas dessas fecundas arbitrariedades
que se abonam mais de uma vez na prática de outras línguas, cujas
reminiscências o poliglota nem sempre soube ou quis reprimir. A
falta de separação entre personagens e autor faz que complicados
conteúdos intelectuais venham a revestir-se de modismos populares e
a cheirar a preciosismo (“Para ele, aproximar-se dali estava sendo
talvez o repensado contra curso de uma dúvida, pelo azado
desatinozinho que o destino quer”). Como quem vence uma aposta, o
autor esconde, aqui e ali, nas meditações de seus sertanejos, um
pensamento de Platão ou de Plotino (“Aquele bezerro carnara dava
gastura, de se reparar, era um nojo, um defeito do mundo. Como se um
erro tivesse falseado seu ser, contra a forma, que devia ser de molde
para ele, a ideia para um bezerro belo: não podido pois ser
realizado”). Mistura personalíssima e inimitável de artifício e
espontaneidade, o estilo de Guimarães Rosa pede que se lhe dê um
crédito de confiança para restituí-lo com juros.
Feita
essa advertência ao leitor, deixemo-lo entrar no primeiro cenário
do livro em “Campo geral”, um recanto oculto da roça, com seu
emaranhado de conceitos, atos e ritos, costumes rudes e paixões
selvagens. Por um achado notável, penetramos nele guiados por um
menino de oito anos, nascido no próprio ambiente, e que o aceita com
inteira naturalidade. Numa reprodução mágica da visão infantil,
episódios insignificantes criam volume e acontecimentos trágicos se
reduzem a meras impressões. Sob nossos olhos maravilhados, o menino
Miguilim cresce, incorpora as lições das plantas e dos bichos,
absorve a sabedoria do irmão menor, e vem-se desenvolvendo dia a
dia, no meio dos segredos inquietantes do mundo dos adultos, mas
impressionando-se sobretudo com milagres que só para ele existem: o
papagaio pronunciando pela primeira vez o nome do irmão meses após
a morte deste, um par de óculos dando à vida nova dimensão e
sentido.
Esses
milagres não são o privilégio das crianças. Adultos que ainda
carregam consigo restos da alma infantil chegam a cruzá-los às
vezes, e em circunstâncias das mais imprevistas. Daí, em “A
estória de Lélio e Lina”, a inverossímil aventura do vaqueiro
Lélio na fazenda do Pinhém, de onde ele sai raptando uma velha
senhora que poderia ser sua mãe, e a quem só o ligam laços de
simpatia. No tecido grosso e palpável de uma história toda real –
com desfile de vaqueiros de diversos tipos, cenas da vida pastoril,
as fases da adaptação de Lélio a seus novos camaradas, as suas
experiências sexuais – o episódio feérico dessa extraordinária
amizade entre a velha sábia e folgazã e o jovem pastor de
imaginação quimérica se destaca sem nada grotesco ou absurdo, com
uma naturalidade serena.
Como
num pendant à atração espiritual que aproxima Lélio de
dona Rosalina, o valentão Soropita, herói de “Dão-Lalalão”,
arde numa paixão sombria, carnal, inextinguível, praticando
desatinos, procurando atingir desvairadamente o cerne do próprio
desejo. Apesar de uma porção de crimes na consciência, vive rico e
estimado no lugarejo onde se recolheu, e gozaria de paz perfeita se
não houvesse a ameaça constante de ressurgir o passado não dele,
mas da mulher, antiga meretriz de Montes Claros, desencadeando
ferozes ciúmes retroativos. O encontro de um velho amigo, a quem a
seu pesar se sente compelido a exibir a felicidade, envolve-o num
conflito dilacerador e o faz resvalar vertiginosamente rumo a um novo
drama, evitado no último instante por um acaso. Mas sente-se que a
história não acabou.
Tal
sensação, temo-la também na última página de “Buriti”, a
única narrativa em que pessoas de classe superior se envolvem na
vida dos Gerais, e acabam subjugadas pelo sortilégio. Quatro
personagens de inesquecível relevo – o fazendeiro, a filha, a
nora, o vizinho – após os esforços desesperados de uma longa
resistência se veem arrastados por sentimentos elementares e
incontroláveis. A história, contada primeiro como reminiscência de
um visitante, depois como experiência de uma das protagonistas,
ganha extrema plasticidade pela mudança do ponto de vista.
Há
em todos esses “romances” uma incontável população de
comparsas, figuras excêntricas, esquisitões, perfeitamente
individualizados, que lamento não poder sequer enumerar aqui, e que
dão ao livro o colorido, o movimento e a graça grotesca de quadros
de Breughel e de Cranach.
A
linha simbólica é predominante nos “contos”, onde o enredo
propriamente dito serve antes de acompanhamento. Assim em “Uma
estória de amor”, em que se conta a festa de Manuelzão, chegado
de menino pobre a encarregado de fazenda. Já no fim da vida,
impelido pela vontade de se perpetuar, constrói ele uma capela e
inaugura-a com um banquete. Em trilhos paralelos correm as duas
ações: a exterior, constituída pela sequência da festa, a chegada
dos convidados, o cerimonial do banquete; e a íntima, o embate de
inquietações surdas no espírito frusto de Manuelzão, torturado
por ideias de vida falha, solidão, morte próxima. As duas ações
chegam a remate no eclodir inesperado, na boca de um velho mendigo,
de uma epopeia, milagre cuja vaga intuição integra o sentido da
festa e apaga os tristes símbolos da vida incompleta de Manuelzão:
o riacho que secou, o cavour que ele almejou por toda a existência e
que estava fora da moda quando, afinal, se achou em condições de
adquiri-lo.
Em
“O recado do morro”, testemunha-se a gênese de uma canção que
se cristaliza imperceptível e acessoriamente no decorrer de uma
expedição científica. Brotada de um germe caído no perturbado
espírito de um louco, alimentada e desenvolvida pela colaboração
ocasional de outros lunáticos, acaba nas mãos de um bardo popular
que lhe dá forma e sentido. A viagem da comitiva e o nascimento da
canção operam-se simultaneamente, e a conclusão desta prefigura o
fim trágico daquela. Um recado infralógico da atmosfera e da
paisagem transmuda-se em verso através da cooperação de uma
sequela de anormais, de senso embotado, mas de sentidos apurados.
Deixei
para o fim “Cara-de-Bronze”, o menor e o mais difícil dos três
“contos”, em que se multiplicam as armadilhas e os contornos de
uma história são apenas esboçados. Chegado à fazenda do
Urubuquaquá, um forasteiro se esforça para compor, com os
depoimentos fragmentários dos vaqueiros, o retrato do velho
fazendeiro apelidado Cara-de-Bronze, o qual, doente recluso em seu
quarto, administra a sua propriedade. Nenhuma das qualidades da
personagem invisível – nem sequer o nome – deixa de provocar
apreciações contraditórias, fazendo entrever em plano mais geral a
impossibilidade de um conhecimento objetivo da realidade humana.
Outro mistério que intriga ao enigmático Moimeichêgo (e ao leitor
também) é a natureza da missão confiada por Cara-de-Bronze a um
vaqueiro escolhido com cuidado, o qual volta à fazenda depois de
prolongada ausência. De suas respostas às perguntas dos camaradas
se depreende que a sua missão, cujo sentido ele intui sem poder
defini-lo, consistiu em trazer ao moribundo paralítico uma multidão
de observações aparentemente desconexas e frívolas de seu antigo
mundo, elementos que lhe permitissem reconstruir para o seu próprio
uso a realidade íntima do passado, uma visão poética do seu
universo. O material reunido pelo emissário é de uma riqueza
disparatada e barroca, transborda do texto da história e se espalha
por uma série de notas.
Essa
figura mal esboçada grava-se entre todas na alma do leitor: do mesmo
modo que ela, o próprio autor, feiticeiro disfarçado em diplomata,
em escritor, em homem de sociedade, encerrado entre as paredes da sua
repartição, da sua casa, da sua classe, delega para o cenário de
sua adolescência não um emissário, mas cem – a turba multicor
das personagens de Corpo de baile – a fim de que lhe tragam
os ingredientes indispensáveis à recomposição daquela paisagem.
Já sabemos que, graças aos milagres constantes de uma memória
excepcionalmente fecunda e criadora, elas se desincumbem a contento
de sua difícil tarefa, a busca do tempo perdido, causa e fim de toda
poesia verdadeira.
Paulo Rónai, em Rosa & Rónai: O universo de Guimarães Rosa por Paulo Rónai, seu maior decifrador
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